O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Uma servente de escola


Fachada primitiva da escola de Coruputuba, antes da primeira ampliação, quando havia apenas quatro salas de aula. Nessa escadinha ousei as minhas primeiras declamações. A janela da esquerda correspondia à Biblioteca. A outra, à Diretoria.


Dona Tereza era servente da escola de Coruputuba. Casada com o professor Francisco, contratado pela fábrica para lecionar no curso noturno, destinado aos funcionários que ainda não tinham completado o primário. Quatro filhos até então, e a avó. Sete bocas, portanto, na casa humilde cedida pela Companhia Agrícola e Industrial Cícero Prado.
Casa cedida, ainda bem, não se gastava com aluguel.  E a Companhia acrescentava o fornecimento gratuito de água e luz. E mais o direito de lenhar entre os eucaliptos. Ah, meu leitor urbano: lenhar quer dizer recolher lenha, catar as varas secas caídas, para formar com elas belos e pesados feixes que aguardarão em pé, num canto do quintal, a sua vez de alimentarem as chamas do fogão...
O fogão era aceso às cinco da manhã. Era a avó quem fazia isso, colocando no fogo a chaleira de água para o primeiro café do dia. Dona Tereza saía cedinho para o serviço na escola, ia cuidar da limpeza das salas de aula, lavar os banheiros, preparar o leite que os alunos tomariam no recreio. Um serviço pesado. Ainda mais para ela, esperando o quinto filho.
O diretor da escola não tinha contemplações: servente grávida continua sendo servente, nada de passar para outro funcionário algum serviço dela...
Pois veio finalmente o quinto filho. Sem direito a licença maternidade, dentro de poucos dias volta ao serviço a Dona Tereza, levando o bebê junto. O carrinho de vime, o dorme-dorme, ficava na cozinha. E a servente se desdobrava para desempenhar as tarefas de limpeza e correr para ver a criança, amamentá-la. Esforçando-se para não dar margem a reclamações quanto à qualidade do serviço. Não adiantou o esforço. O diretor a pressionava todo dia, reclamando de qualquer coisa, incomodado com a situação.
Até que Dona Tereza não aguentou mais fazer silêncio sobre a perseguição. Chorando, aconselhou-se com o marido. O professor Francisco gostaria de dizer: “Minha nega, larga desse serviço”. Mas como dizer isso, no meio daquela pobreza, ganhando tão pouco pelas aulas do curso de adultos... Acabaram decidindo por um meio-termo. Assim, Dona Tereza expôs ao diretor sua intenção de conseguir uma licença, um afastamento, até que a criança pudesse ficar em casa, para ela trabalhar mais sossegada.
“Assina aqui”, lhe diz o diretor. Ela assina. À tarde, em casa, ela recebe um recado: não precisava ir para a escola no dia seguinte.
No dia seguinte ela vai sim à escola, informar-se sobre o afastamento, a licença. E fica sabendo que não é mais para ela ir trabalhar. Ela tinha assinado, sem perceber, um pedido de exoneração.
Reclamar? Com o bispo? Reclamou sim, inclusive com o bispo em Taubaté, com o vigário em Pinda.  Não adiantou, o diretor tinha costas quentes na política. Era assim, naquele tempo.
Aquele tempo passou, faz tempo, muita coisa melhorou para os professores e os funcionários das escolas. No entanto, ainda há injustiças a serem corrigidas.
Dona Tereza sobreviveu àquelas injustiças, que acabaram por ensiná-la a estar sempre muito atenta ao mundo à sua volta. Desenvolveu, debaixo de sua aparência tranquila, uma disposição defensiva que podia assumir o comando repentinamente.  Sobreviveu a muitas outras dificuldades que foram aparecendo no seu caminho de mulher jovem, bonita, pobre e honesta. Defendeu seus filhos contra tudo e contra todos, muitas vezes deixando a estratégia defensiva e partindo para o ataque preventivo... Viveu até quase completar setenta e nove anos de lutas, bem mais que o Professor Francisco, que tombou ainda jovem e a deixou sozinha para proteger e orientar a prole.
E sabe a criança, aquele menino que viveu uns tempos num carrinho de vime na cozinha da escola...? Aquele menino, anos mais tarde, voltou para a mesma escola como aluno, e depois voltou como professor: Foi ali o seu primeiro dia de trabalho no magistério.
E depois foi ser diretor de escolas por esse mundo de Deus. E em cada professor ele via o Seu Francisco lutando pela vida.  Em cada servente, em cada merendeira, ele enxergava a figura da Dona Tereza. E nunca achou ruim com funcionárias e professoras que precisavam levar suas crianças para o serviço.
*****
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Jacinto Avelino Pimentel Filho


Nenhum comentário:

Postar um comentário