O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Minha metamorfose


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Quando assumi a Escola do Bairro do Rio Abaixo, em Jacareí, descobri que meus alunos eram crianças de primeira série, com seis ou sete anos de idade... Uma classe de alfabetização para quem vinha de uma empolgante experiência com adolescentes. Alfabetizar crianças da roça: ensinar a pegar no lápis, examinar as cabecinhas, examinar as unhas... Um desânimo. Aquelas crianças não eram os alunos que eu deixara no Porto Novo.  Por causa de informações truncadas, tinha pensado que no Rio Abaixo ia novamente lecionar para crianças de terceira ou quarta série.
Por isso, fiquei com antipatia delas. Com má vontade. Coitadas das crianças, perceberam a má vontade do professor (elas me chamavam de Doutor Paulo...). Na hora do recreio eu não saía para vê-las brincar. Ficava na sala, lendo. De vez em quando duas delas espiavam pela janela, curiosas. E eu não me comovia: “Vão brincar, vão!”
A classe era dividida em duas seções: a dos “adiantados”, que eram todos repetentes, e a dos “atrasados”, que eram todos novos. Para a classe toda, a mesma cartilha, com a distância de umas doze lições. Só havia uma lousa, portanto era preciso passar tarefas pessoalmente nos cadernos de uma turma enquanto a outra copiava direto do quadro: uma ginástica. Mais alguns dias e descobri que era mais fácil deixar correr. Os pequeninos “atrasados” foram ficando na mão de Deus: parei de lhes passar lições nos cadernos. Ficavam desenhando, ou copiando lições que eu passava no quadro para os “adiantados”. Quer dizer: copiavam o que não entendiam, só para fazer alguma coisa.
Heleninha ainda não tinha sete anos.  Estava, portanto, no meio dos “atrasados”. Há muito tempo eu não olhava a sério o seu caderno e já não a chamava para ler diante da mesa do professor. E um dia, quando acabei de colocar na lousa a lição (dos “adiantados”) ela falou: “Professor, eu sei ler tudo isso daí!”
Nem liguei. Imagina. Sabe ler, bem capaz!
Com sua vozinha aguda, irritante, insistiu: “Ô professor, eu sei ler tudo isso daí, tem gente que é repetente e não sabe!”
Que chateação essa menina que não para de falar. Vamos tirar a graça dela: “Então leia!”
E ela leu. Meio declamado, solene, leu as três orações e todas as palavrinhas das três colunas. Tudo decorado, pensei. Ela deve ter irmão que ensinou e ela está falando tudo de cor. Vou ter que provar que ela não sabe. “Venha aqui.”
Abri a cartilha e fui indicando as palavras que ela devia ler. Leu. Agora, salteado. Leu. Virei a folha: então leia aqui. Leu. Virei uma porção de folhas, fui nas lições do fim da cartilha: leu tudo. Gaguejando, mas leu.
Começou a me bater um mal-estar. Mas eu ainda precisava completar a maldade. Precisava ir até o fundo. Então tirei da gaveta o jornal, o mesmo jornal que eu ficava lendo durante o recreio. Indiquei uma coluna, ela olhou e ...  Começou a ler. Tropeçando, claro, mas foi lendo, balançando a cabecinha afirmativamente a cada palavra, com o corpinho duro, empertigado...
Heleninha, como que você aprendeu? Foi algum irmão? 
E ela me disse (tão contentinha...) que aprendeu a ler olhando quando eu estava ensinando para os repetentes.
***
Não é que Heleninha estivesse aprendendo sem professor. Ela estava aprendendo apesar do professor.
No fim de semana fui atrás das professoras alfabetizadoras, experientes. Emprestei planos, cadernos, semanários, diários. Pus na cabeça que ia recuperar o tempo perdido. Meu Deus: desde maio que estou nessa escola. Já estamos em setembro e não fiz nada pelos “novos”. E pelos repetentes eu fiz? Fiz nada. Só toquei para frente e eles vão indo porque é a segunda vez que usam a cartilha....
Mudei. Graças a Deus. Comecei a me interessar pelas crianças. Comecei a brincar com elas no recreio. Mudei a posição das carteiras, enchi as paredes com gravuras, cartazes. Trouxe minhas flores e as crianças perceberam a mudança. Comecei a ensinar: era para isto que eu estava lá.
Não foi possível promover os “novos” no final do ano. A minha mudança tinha sido tardia. Mas terminaram o ano bem adiantados e iriam compor um primeiro ano “forte”. No ano seguinte, a professora que lecionava de manhã me ofereceu a chance de fazer uma troca: ela ficaria com o primeiro ano, deixando para mim o segundo e o terceiro. Agradeci o gesto de boa vontade, tão raro! Mas recusei, fiz questão de pegar novamente a classe de alfabetização, queria participar do milagre, presenciar o instante epifânico em que uma criancinha começa a ler, testemunhar as suas primeiras redações.
Em abril, minhas crianças de sete anos estavam lendo. Em maio escreviam pequenas redações. E a Heleninha no meio! Ficou na minha classe até a conclusão da quarta série, ali mesmo, no Rio Abaixo. Poder testemunhar o seu progresso, ano a ano, para mim foi uma bênção divina, parece que era para permitir que diariamente eu pudesse me redimir, me penitenciar da negligência inicial.
Nunca mais fui o mesmo. Antes, eu tinha sido o que eu pensava que fosse um professor.  Então comecei a me construir como educador.  Graças a Deus! Graças a Heleninha!
***
Em 2012 lancei o livro “Aconteceu na Escola”, que inclui esta narração. Em outubro fui fazer o lançamento no Museu de Jacareí. Compareceram alguns dos meus aluninhos daquele tempo: Juliana, Selma, Rogério, Valdir... Perguntei sobre a Heleninha, Juliana contou que ela tinha falecido havia cerca de dez anos.
*****
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA

Registro 344.938 - Fundação Biblioteca Nacional

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A técnica da redescoberta


Na década de 1980, sendo eu diretor da Escola Ismênia, a Milu lecionava ciências e matemática para as terceiras e as quartas séries. Um dia veio falar comigo na diretoria e já entrou declarando, com um ar meio desesperado: “Vou voltar para o livro! Não está dando certo, já é outubro e os alunos estão muito atrasados, muito mesmo!”
Meses antes, ela tinha participado de uma série de reuniões na Oficina Pedagógica e voltou encantada com as ideias de ensinar tudo através da experimentação e dos trabalhos em grupo. Queria, em lugar de passar o conhecimento pronto e embalado em pontos na lousa ou em lições de livros, queria que os alunos fizessem experiências para redescobrir o que já tinha sido descoberto pelos cientistas.
Ora, é tão emocionante a gente ver um profissional da educação entusiasmado com uma ideia pedagógica! Autorizei imediatamente – como coisa que um professor necessitasse de autorização do diretor para adotar uma linha pedagógica! Bom, mas autorizei e garanti apoio. Ela ia mesmo precisar de apoio. As aulas ficaram de repente bem mais movimentadas. Mais barulhentas.
Alunos saíam e entravam, carregando madeiras, pregos, ferramentas. Iam se reunir em grupos nos locais mais diversos da escola, uma turminha no galpão, outra na biblioteca... Faziam suas experiências seguindo um roteiro discutido com a Milu e depois elaboravam relatórios para dizer o que tinham aprendido.  Era indiscutível que os alunos estavam finalmente formando conceitos sobre o que estudavam. Mas isto tudo, apesar de ser profundo, era muito lento! E muito barulhento! Daí o desespero da professora.
Numa aula tradicional seria bem rápido ensinar as unidades de medidas. Era só desenhar na lousa uma tabela com a sequência crescente e a decrescente das medidas a partir da medida padrão, e dizer que bastava ir mudando a vírgula para transformar, por exemplo, metros em milímetros ou quilômetros, litros em decilitros etc. Num instantinho o professor podia anotar no seu diário de classe que já tinham sido dadas as medidas de volume, comprimento, massa e outras. Sim, tinham sido dadas – mas, se tinham sido compreendidas, disto ninguém tinha certeza nem parava muito para pensar.
Agora, com o novo jeito de ensinar que a professora estava adotando, a intenção era fazer a classe compreender através da experimentação. Antes de estudar as medidas-padrão, vamos fazer as crianças começarem lá atrás, no tempo dos babilônios e fenícios. Em vez de falar em grama, quilo, tonelada, vamos construir uma balança de braços iguais. Cada equipe faz a sua balança, trazendo de casa umas ripas e pregos – e também dois pratos de colocar samambaia, com as correntes. Pendura um prato em cada braço da balança, e vamos fazer que eles fiquem equilibrados, colocando um livro num dos pratos e vamos encher o outro prato com borrachas até podermos concluir que a massa de um livro é igual à massa de trinta e sete borrachas. Assim, aos poucos, os alunos vão descobrindo que era preciso inventar uma medida-padrão, porque cada livro tem um peso diferente, e cada borracha também, e há borrachas meio usadas, algumas foram mordidas e tudo ficava muito incerto... Por isto, foi inventado o grama, com seus múltiplos e submúltiplos.
E ainda faltava estudar medidas de comprimento, de volume, de área, de tempo... Por isto foi que, em outubro, vendo que a matéria praticamente não tinha sido dada, a professora Milu resolveu dar adeus às ideias da Escola Ativa, voltou para os livros e começou de novo a pôr o ponto na lousa e ninguém mais martelou o dedo ao construir uma balança.
Uma parte de mim – a parte sonhadora – ficou meio triste: saudade dos meus primeiros tempos de professor... Mas a parte prática teve de concordar. Tinha que cumprir o programa. O episódio rendeu várias discussões, inclusive na Oficina Pedagógica. Introduzi na discussão o fato de que as escolas privadas não se encantam muito com as técnicas de redescoberta. Dão ao aluno o conhecimento já pronto, para ser aprendido como está, como nos foi legado pelas gerações de sábios desde a antiguidade. Para dar o exemplo extremo, num cursinho para vestibular alguém vai tentar ensinar através da redescoberta? Com trabalhos em grupo? Ah, não vai não. Os seus alunos precisam aprender rápido uma grande quantidade de conhecimentos. Na escola pública os professores são incentivados a não se incomodar muito com essa quantidade, importa é que as aulas sejam movimentadas, alegres, criativas, com muita atividade grupal, socializante.
Mas creio que não precisamos abandonar de todo essa técnica. Se não é possível dar toda a matéria fazendo o aluno redescobrir tudo que já foi descoberto, é possível introduzir uma ou outra aula extremamente instigadora, propositadamente ocultando dos alunos a informação final, para que eles, individualmente ou em equipes, busquem a solução.
Anos depois desse episódio, quando eu já tinha voltado a lecionar para alunos de quarta série, comecei a contar para a classe a história das grandes descobertas. Isto foi na Gilda Piorini. Descrevi as caravanas, mostrei fotos de camelos, comparei com as tropas de burro que já foram comuns em nossa região, enumerei os produtos que a Europa comercializava com o Oriente, mostrei no mapa os pontos de partida das caravanas e os destinos mais buscados, como Calicute, na Índia.
Até aí, estava dando uma aula nos melhores moldes do ensino tradicional. Mas então afastamos as carteiras, assumimos a dramatização de uma partida de caravana. Livremente, os alunos incorporaram uma das personagens típicas, cameleiros gritando uns com os outros, os guias discutindo as rotas, mulheres chorando ou fazendo recomendações aos maridos que partiam, cachorros latindo... Afinal, bem lentamente, lentamente, a caravana se pôs em movimento, até que, ao meu sinal, tudo se foi congelando, a cena teatral acabou e as crianças aplaudiram e gritaram, e se abraçavam, emocionadas, e vinham me abraçar também.
Na próxima aula, a classe se dividiu em equipes, cada aluno tinha seu atlas e o grupo tinha que ir descrevendo o itinerário seguido pela caravana, desde Lisboa ou Madri, até Calicute. Depois de muito estudo dos mapas, todos acabaram traçando roteiros lógicos, que incluíam a travessia do Bósforo, entre a Europa e a Ásia. Um dos grupos resolveu – vejam só – não prosseguir viagem, achou que era mais lucrativo abrir um grande armazém na Itália, e ficar ali mesmo, bem na rota das caravanas, para ganhar muito dinheiro abastecendo os viajantes, quem sabe cobrando deles parte da mercadoria que estivessem trazendo!
Mas todos os demais acabaram chegando às Índias e prossegui com a narração, eu mesmo encantado com a participação daquelas crianças de nove e dez anos. De repente, penalizado, contei-lhes, que os turcos haviam tomado Constantinopla e não dava mais para as caravanas europeias passarem por ali!  
Diante do mapa mundi pendurado na lousa, a classe, novamente dividida em equipes – ou caravanas – começou a buscar a solução, rotas alternativas. Houve sugestões de trafegar mais para o norte, mas eu contava sobre as estepes geladas da Rússia, mostrava o Himalaia, os camelos não iam passar. Alguém queria que atravessássemos o Mediterrâneo na altura de Gibraltar e prosseguíssemos para leste pelo norte da África. Sim, isto tinha de fato acontecido, mas o Saara, eu dizia, era impiedoso – e descrevia as dunas, o areal imenso (citava Castro Alves), mostrava fotos do deserto. E acrescentava os árabes dominando a Palestina, por ali não ia dar passagem não. As crianças ficavam desesperadas.
Então a Mayza disse: “Já sei”.
Levantou-se, foi à frente da sala e traçou sobre o mapa o caminho que ela tinha descoberto. Com o dedinho saindo da Península Ibérica, desenhou pelo Atlântico uma linda curva descendente, passou rente à África, contornou o Cabo das Tormentas, subiu pelo Índico entre Madagascar e o continente, subiu mais, derivou levemente para a direita, e chegou na Índia! Corremos para a lousa: o dedinho dela tinha parado em Calicute!
Era a rota que portugueses e espanhóis levaram séculos para descobrir.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
No livro ACONTECEU NA ESCOLA
Registro 344.938 - Fundação Biblioteca Nacional

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O Jogo dos Dez Anjinhos


  • Participantes: Um Avô e uma Neta
  • Recomendação: Que a Neta tenha aproximadamente um décimo da idade do Avô (mas isto não é essencial)
  • Local do jogo: Uma Piscina
  • Etapas:

1-           A Neta fica em pé sobre o trampolim, ou a mureta, conforme a Piscina. Fica o Avô dentro d’água, de costas para a Neta, olhando para o Céu e falando sozinho: “Nossa, como o céu está bonito, o que será que tem lá, tem as nuvens, ah lá, tem passarinho voando, será que tem Anjinhos também?”

2-           A Neta pula na Piscina, mergulhando. O Avô se aproxima, meio assustado. Quando a Neta põe a carinha para fora d’água, o Avô pergunta: “- Nossa! Quem é você?” E a Neta, meio sem fôlego, responde que ela é um Anjinho, que o nome dela é Pietra. O Avô demonstra admiração, faz perguntas sobre o Céu, e a Neta explica que lá é muito bonito, que lá tem muitos outros Anjinhos e que daí a pouco vai chegar outro Anjinho.

3-           O Avô agradece as informações, deseja ao Anjinho um bom passeio pelo Planeta etc. e ajuda o Anjinho a sair da Piscina (o Anjinho não consegue fazer isto sozinho e suas asas devem estar molhadas...).

4-           De novo, a Neta fica em pé sobre o trampolim etc. e o Avô fica olhando para o Céu (ver Etapa 1). Então cai mais um Anjinho, mergulhando. O Avô vai lá e pergunta tudo outra vez, só que agora o Anjinho já é outro:  “- Meu nome é Sabrina!”.

5-           O jogo prossegue, com as cenas sempre meio iguais. Muda o nome do Anjinho várias vezes. O Avô, macaco velho, às vezes examina os dentinhos do Anjinho e constata admirado: “Interessante, você também está com dentinhos faltando na frente, igual ao Anjinho tal, que também é banguela!”. E o Anjinho explica: “Nós somos gêmeos!”.

6-           Depois, um a um, começam a chegar lá das alturas infinitas os Anjinhos-Bicho. Cai e mergulha, primeiro, um Anjo-Tubarão. Mas é manso. Para sossegar o ambiente, o Anjo-Tubarão beija a mão cheia de sardas do Avô, que fica mais tranquilo. Em seguida, cai um Anjo-Leão, que não fala nada, só rosna e urra, não dá para o Avô entender nada. E chega um Anjo-Peixe, que tem as bochechas chupadas ao máximo, formando um lindo biquinho com os lábios cor de rosa.

7-           Sensacional é a chegada do Anjo-Tartaruga Marinha, que logo vai avisando que precisa sair da Piscina: “Aqui não é minha água!”.

8-           Claro que várias cenas diferentes acontecem, mas não vão para o ar, ficam em off. Porque às vezes é preciso planejar a performance. Então o Anjo sai do seu personagem, assume o costumeiro papel de Neta e pergunta: “Vovô, o que é que tubarão come?”. Ou o Avô precisa falar com a Neta, não com o Anjo, e recomenda: “Olha, cuidado, não vai pular muito perto das pessoas! Cuidado com a beira da Piscina!”.

9-           Estas recomendações não têm graça, não têm magia. São muito terrestres. Mesmo assim, tudo prossegue, até que o Avô não aguenta mais e, por sorte, a Neta informa: “- Vovô, agora vou brincar com as minhas colegas. Tchau!

10-        E sai voando.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto de PalasAthenaAnamariaJorio