O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Entre o carro de boi e o avião a jato



O Vale do Paraíba tem o avião e o carro de boi. No meio dos dois, uma imensa população que, geração a geração, vai se aproximando cada vez mais do avião e do shopping, deixando esmaecidos na lembrança o carro de boi e o fogão de lenha. Tinha que ser assim. Nossa cultura é condicionada pelo espaço e pelo tempo.
Limitados pelas serras e orientados pelo rio, desenvolvemos nossos costumes influenciados pelas viagens entre a capital da província e a capital do império. De uma e de outra chegaram até nós as notícias políticas e os costumes refinados. Pelas estradas que uniam as minas com o litoral desceram até aqui a cozinha e a desconfiança mineiras e subiram o artesanato indígena e as técnicas construtivas do caiçara.
O tempo era de religião, que configurou nossas festas, nossas irmandades, nossos escritos, nossa música, nossa arquitetura. Mas o tempo transcorre. Aos poucos, a religiosidade foi se tornando apenas um pano de fundo para ocasiões de encontro entre as populações urbanas e do campo. Hoje, a população do Vale do Paraíba se indaga sobre sua própria cultura e vai percebendo que precisa produzi-la de novo, que não podemos viver do que já produzimos nesses séculos, pois o antigo e tradicional vai sendo terraplanado pelos poderosos meios de comunicação e já temos vergonha de forçar os “rr” como bons caipiras que fomos.
Entre o carro de boi e o avião, já não queremos pintar telas representando um casebre bucólico, porque sabemos que ele é lindo para quem contempla o quadro, mas é horrível de ser habitado. Não queremos de modelo as lavadeiras da beira do rio, pois, enquanto nosso olhar se deleita com os coloridos reflexos da roupa branca sobre o capim verde, nosso coração sabe que não é justo pessoas trabalharem daquele jeito. Mas também não queremos pintar nossas ruas atuais, com sua confusão de fios elétricos e telefônicos se emaranhando nos postes.
Entre as duas maiores cidades do país, queremos a sofisticação da arte e da cultura, mas atravessados pelas influências mineiras e litorâneas, também queremos a simplicidade. Na organização do carnaval, ora tentamos, com resultados chinfrins, imitar os desfiles das grandes escolas de samba, ora nos voltamos para a singeleza dos bonecões.
Estamos ainda procurando o objeto do nosso gosto cultural.
Às vezes queremos o passado com seus costumes, deixando de considerar que tudo em volta se modificou e a festa antiga fica flutuando no meio da modernidade, sem alicerces. Alguns de nós vamos percebendo que talvez seja mais significativo preservar a lembrança do evento do que forçarmos a sua realização de novo.
Telefonou-me a representante de uma empresa de produção artística, oferecendo para o departamento de Cultura seus serviços de decoração de ruas para a procissão de Corpus Christi. Espantei-me. Mas, de fato, não havia com que me espantar. O que eu queria? Que renascesse a procissão de outras eras? Que o povo continuasse atapetando as ruas do centro com flores, folhas, desenhos coloridos de pó de café e casca de arroz? Que as janelas ainda fossem adornadas com toalhas, almofadas, tapeçarias? Quem iria fazer isto? Se já não mora ninguém no centro, é cada vez menor o número de fiéis que acompanham a procissão e é cada vez maior a proporção de não católicos na cidade... E as folhas de manga iriam ser colhidas onde? As residências não têm mais quintais. Então, precisa mesmo que a prefeitura ajude, pelo menos mandando caiar no piso da avenida alguns desenhos referentes à data. E contratando a banda de música para acompanhar o préstito. Tudo com muito cuidado contábil, por causa do artigo dezenove da Constituição. E os músicos já não aceitam tocar seus instrumentos movidos apenas pela fé, principalmente agora que mais da metade da banda é constituída de evangélicos.
Para que mesmo iríamos enfeitar as ruas? Para atrair turistas, fingindo que a cidade mantém suas tradições religiosas? Sendo que nossos moradores, aproveitando os feriados, foram praticar turismo em outros municípios... Deveríamos então contar – como antigamente – com o afluxo de roceiros que viriam espiar o movimento? Sem esperança! Mais fácil os moradores da cidade, nesses dias, irem passear na roça, visitando os pesqueiros e lanchonetes de lá.
Na Semana Santa, nas festas de santos, nas cavalgadas de São Benedito, nas Folias de Reis... De todos os eventos culturais que já foram majestosos restam hoje festas divertidas sim, mas quase que estritamente comerciais. Ou esportivas, caso das cavalgadas. Poucos se lembram do santo, interessam as barracas em volta da santidade esquecida.
No entanto, ainda vivem, nas estreitas ruas da periferia, alguns velhinhos que sabem as rezas, que entoam as músicas que nunca foram escritas, velhinhos que ainda têm o poder de encantar os netos com o seu conhecimento e seu gingado. Velhinhas que sabem as receitas, que têm os modelos e moldes. Esses guardiões deverão ter suas memórias registradas.
Reunido com alguns interessados nos movimentos culturais, ouvi um relato triste e uma proposta assustadora. Os artesãos não estavam comparecendo às feirinhas de artesanato, porque vendiam muito pouco, as pessoas preferiam comprar, ali por perto mesmo, produtos chineses, bem baratinhos. Ora, para que eles voltassem à praça, embelezando-a com suas barraquinhas cheias de bordados, bonecos, almofadinhas e panos de prato, seria bom que a prefeitura começasse a pagar-lhes um cachê todo final de semana. Argumentei que isto não era possível e também machucava a lógica de mercado e os princípios da administração pública. Mas aquilo ficou me preocupando. Se não há mais compradores para artesanato, vale forçar a permanência de uma feira? Para manter uma tradição? Mas não há caminho para refazer o passado. Compravam-se tais produtos antigamente não por beleza e adorno, mas por necessidade e uso no dia a dia. Muita da matéria prima do artesanato daqueles tempos era extraída das matas, do leito dos rios, das praias. Isto hoje poderia tipificar um crime.
Assim, alguns eventos culturais vão se transformando em réplicas de si mesmos, em pobres imitações de grandiosos acontecimentos do passado. Mas que podem valer como registro, como auxiliar da memória coletiva, para que as atuais gerações sejam informadas de que este Vale já foi habitado, nos duríssimos tempos do desconforto e da simplicidade, por um povo unido, ético, piedoso e criativo.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Imagem: pt.m.wikipedia.org



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