O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 22 de julho de 2012

Nosso Natal no presídio

A gente só se sentia meio intimidada era na hora da entrada e na hora da saída, por causa da violenta bateção das grades de ferro e do barulho do correr das trancas e colocação dos cadeados. Também por causa do clima tenso que dominava a guarda nesses momentos. No mais, lá dentro era muito sossegado. O professor Sílvio nos falou: Aqui dentro nós estamos mais seguros do que lá fora.
Foi o professor Silvio que, sabendo dos saraus que eu e Anamaria vínhamos desenvolvendo nas bibliotecas de Pinda, teve a ideia de nos convidar para ir fazer coisa parecida no presídio onde ele trabalhava. Assim, fomos parar no I.R.T., para dar algumas oficinas de contos e de poemas, concluindo por organizar um concurso interno de literatura. Faltavam poucas semanas para o Natal, que foi o tema escolhido para as composições.
O Instituto já tinha suas atividades de leitura, estimuladas pelo professor Silvio e coordenadas pelos internos responsáveis pela biblioteca. Combinamos o regulamento para o concurso, as inscrições, o júri etc. e finalmente estávamos compondo a mesa da solenidade de encerramento, no auditório. Sendo que todo o cerimonial foi organizado pelos próprios internos.
O público era muito respeitoso e comportado. As declamações, de boa qualidade, as músicas monstravam que lá dentro havia grandes talentos. Enfim, a gente só se lembrava de que estava dentro de um presídio quando olhava para as janelas com fortes grades.
Final das apresentações: houve a premiação dos melhores contos e poemas, distribuição de livros, mais algum número musical e as palavras finais dos componentes da mesa.
Então, para encerrar mesmo, a funcionária que estava representando a direção do Instituto, usou da palavra, elogiando a organização do evento, as obras literárias apresentadas, os números musicais, agradeceu o nosso incentivo e terminou desejando Feliz Natal para todos os presentes, Feliz Ano Novo e “que no próximo ano possamos estar todos novamente juntos aqui”.
Todo o auditório se pôs a agitar a mão, dizendo silenciosamente que não. E tudo acabou em risada.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: g1.globo.com

terça-feira, 17 de julho de 2012

Araújo, o Professor Pardal


O Araújo, o Ângelo, os irmãos  Amarante , o Homero, eu, o Bosco, o Zaga, o Pedro, nosso primo Valério... Era essa a composição mais frequente do nosso timinho – e era com essa turma que, nas manhãs de domingo, a gente percorria Coruputuba, atrás dos desafios e das revanches. Vila Figueira, Fazenda, Vila Jacarandá, Vila Maria, Vila Campineira... Sendo que o nosso mando de jogo era no campinho perto da Igreja, no meio dos eucaliptos.

O Adauto acompanhava a gente, mas não para jogar. Nem podia, ele já jogava na Industrial. Ele ia com a gente, mas era para apitar. Interessante um time excursionar levando o árbitro. Mas ele não dava mole não. Chegou a me expulsar na Jacarandá, por jogo perigoso.

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Numa festa de Primeiro de Maio, formei dupla com o Araújo e ganhamos a corrida de três pernas. Depois, quisemos aplicar esse sistema de forças na bicicleta e fomos para a Vila São Benedito, ele no selim e eu na garupa. Ele pedalando com a perna direita e eu com a esquerda. Assim, cada um podia colocar toda a força em uma perna só. A bicicleta virou um bólido, sensacional. Até que um dos dois se atrapalhou e os dois caíram e fomos ralando no asfalto novo da estrada... Doeu muito! Mas subimos de novo na bicicleta, que só tinha entortado o guidão, e prosseguimos mais devagar.

Nosso companheirismo com o Araújo atravessou a adolescência e continuou. Ficou muito amigo do Bosco. Juntos, tocavam no Vox Populi nas igrejas, nas festas. Tocaram na Basílica de Aparecida.

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O Araújo gostava muito de ler, era um estudioso. Nas revistas em quadrinhos que ele me emprestava eu gostava muito da Epopeia. Foi naqueles quadrinhos que, aos quatorze anos, eu aprendi sobre a guerra de Troia, sobre o Quo Vadis e outras grandes aventuras.

 Ele já nos deixou há alguns anos, tornando este nosso mundo um pouco mais triste. Mas eu me lembro dos episódios em que ele deixou o mundo da nossa adolescência mais alegre e engraçado.

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Num belo sábado resolvemos fazer uma caminhada para conhecer o trecho de várzea atrás da Vila São Benedito. Fomos, a pé, pelo asfalto. Então, um pouco antes da entrada para a Fazenda, tivemos que passar na frente de umas casas onde havia dois cachorros grandes e bravos.

O Araújo estava com um pedaço de pau de lenha na mão e os cachorros vieram latindo para cima dele e ele saiu correndo. A gente já sabia que aqueles cachorros detestavam pessoa que estivesse com um pau na mão. Por isso que estavam perseguindo o Araújo.

Eu, o Pedro e o Bosco fomos atrás, gritando: LARGA O PAU, ARAÚJO. E ele correndo cada vez mais. Até que eu entendi e gritei: ARAÚJO, JOGA ESSE PAU FORA.

Então ele jogou o pau e os cachorros pararam de perseguir o Araújo e voltaram resmungando e rosnando.

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No começo dos anos sessenta, todos se interessavam muito pelas conquistas espaciais. Mas o Araújo era demais, lia tudo sobre naves e sputiniks, sobre voos tripulados e não tripulados, sabia tudo sobre combustíveis líquidos e sólidos, tinha na cabeça o ranking das conquistas russas e americanas.

Então, começou a contar para todo mundo que ele ia fazer subir um foguete, estava pesquisando um combustível revolucionário. Realmente, a gente viu que ele estava trabalhando num tubo reforçado, parece que era de alumínio, fazendo uma ponta de ataque, colocando na outra extremidade umas aletas direcionais. Mas sobre o combustível ele ainda não falava nada.

Numa bela manhã de domingo houve uma reunião no Largo, perto da Quadra. Parecia o público preparado para ver a demonstração do voo de Santos Dumont. Por fim, lá veio o Araújo, que morava ali pertinho mesmo, vizinho da Tatá. Veio o Araújo trazendo cuidadosamente o seu míssil. O pessoal rodeou e ele pediu que abrissem espaço para a experiência.

Foi tudo bem rápido. Posicionado o foguete, ele colocou fogo num pavio, a coisa soltou de repente um monte de fumaça e disparou para cima, deixando no ar um forte cheiro de laranja queimada. Foi cair perto da Pensão. Os gritos explodiram: – Viva o Professor Pardal!

O combustível secreto tinha sido casca de tangerina, secada ao sol durante muitos dias, até ficar esturricada. Mas que o foguete subiu, subiu! Mais alto que a Caixa D’água!

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paulotarcizio@gmail.com

www.paulotarcizio.blogspot.com 

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Arquivo Historico Waldomiro Benedito de Abreu - Quadra e caixa d'água de Coruputuba 

Na tuia tu ia

 


Nós não nos considerávamos caipiras. Sim, falávamos barde, memo (em lugar de mesmo), falá, comê, trabessero, têia (do teiado, ué!), ocê, bonde no lugar de ônibus, ridico, cuié,  muié, tá, nóis tava. Mas não éramos caipiras que nem o pessoar da varge. Aquele pessoar sim, era caipira memo, uns jacu do mato. Os caipiras de verdade, no nosso entender, eram os que falavam num carece, em lugar de não precisa, entonce em vez de então e – o pior de tudo – falavam ponhá em vez de pôr. O ponhá, para nós, era o estigma derradeiro. Quando queriam provar que não eram caipiras ficava pior: faziam força para acertar e falavam galfo, malmita... Nós, os filhos do professor, querendo falar “Eles foram varrer o quintal porque estava muito sujo e nós fomos também”, falaríamos “Eles fôro varrê o quintar porque tava muito sujo e nóis fomo tamém”.  Já os caipiras do fundo da varge diriam “Êzi fôro barrê o quintar a mode que tava munto xujo e nóis fumo tamém”. Eram diferenças fundamentais, acreditávamos.
A escrita nos salvou de continuar falando daquele jeito. Escrever, a gente escrevia certo. Ainda mais no Ginásio, quando comecei a prestar mais atenção na minha fala e aos poucos fui perdendo a caipirice do jeito de falar. Se bem que em casa e no bairro mantive, como uma espécie de resistência e saudosismo, na medida do possível, o meu linguajar costumeiro, como um bilíngue. Quando comecei a trabalhar em dois lugares ao mesmo tempo, na escola e na fábrica, falava de um jeito com as professoras e alunos e de outro jeito com a peãozada.
Uma vez presenciei um garoto, que decerto queria estrear as novidades aprendidas na escola, falando para sua avó: Vou pegá as telha.
E a avó: Pegá  o quê, minino?  
O neto, sério: As telha
E a velha, no máximo do deboche: Que isso, “telha”? Que “telha”? Fala direito, sua besta: é têia, viu, é têia... minino bobo... inventano moda...
Eu achava interessante que  o choque entre o linguajar culto e o informal, dentro da família, às vezes resultava em alguns interessantes trocadilhos – e eu já vinha pegando gosto com isto, graças à saudável influência do Prof. Mario César.
Um dia, o Zaga ficou bravo com o Bosco e falou alguma coisa não muito agradável para ele. Eu interferi, para apaziguar, mas o Zaga não gostou da intervenção e me interpelou:
- O que foi, você está se tomando?
Não perdi a ocasião:
- Se tô, mano!
E a encrenca acabou em risada.
Noutra ocasião, época de quadrilha na tulha (para nós, tuia), minha mãe sugeriu que a gente fosse à reza na capela. Mas eu já estava vazando e mamãe ralhou:
- Não vai na igreja, né? Se fosse na tuia tu ia!
E ainda tive tempo de comentar com Zaga: A mãe não percebeu, mas ela fez um trocadilho espetacular!

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: Arquivo Histórico Waldomiro Benedito de Abreu - Tulhas de Coruputuba -