O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O pastor do cajado de ferro

Padre João conhecia bem as suas ovelhas, as suas ovelhas o conheciam bem – e eram apascentadas com cajado de ferro. Ele controlava a vida de cada família, decidia quais deveriam ser as companhias de cada jovem, com quem o moço, ou a moça, poderiam se casar, que roupas deveriam ser evitadas, que fitas de cinema poderiam ser assistidas... Uma vez, na rua, chamou a atenção de uma jovem que estava de minissaia. A mocinha se surpreendeu e, indignada, respondeu que ela nem era católica. Ou seja, nem pertencia ao rebanho dele...
Ensinava aos eleitores-fiéis em quem deveriam votar. E não se limitava a delicadas orientações. Uma vez, mandou o motorista parar o jipe da Companhia em frente da nossa casa, desceu, empurrou o portãozinho e, sem bater palmas nem pedir licença, chegou até a varanda e arrancou da porta da sala um cartaz eleitoral do Adhemar de Barros, picou, jogou os pedacinhos no canteiro e foi embora, sem ter pronunciado nenhuma palavra.
(Mamãe decidira votar no Adhemar porque a Dona Leonor tinha presenteado nossa família com uma caixa de brinquedos de verdade, no Natal anterior.)
Quando ficamos adolescentes, eu e meus irmãos nos encantamos com a revolução cubana, as políticas do Jango, as ligas camponesas do Julião, a coragem do Arraes, as lutas pela independência na África... Mas éramos bombardeados, na igreja e na rádio, com as palavras do Padre João, que reduzia todos os nossos heróis à condição de comunistas, ou seja, comedores de criancinhas.
Padre João queria a eterna paz social. Nas missas de aniversário do Dr. Cícero, patriarca de Coruputuba, ele proferia um sermão que nos ensinava: Deus criou as humildes ervinhas do campo, mas também criou as frondosas árvores que abrem seus gigantescos galhos na serra. Por isto, é vontade de Deus que existam pobres e ricos, sendo que os ricos garantem a sobrevivência dos pobres...
Aliás, em 1934, a ata de ereção da capela de Coruputuba já registrava que Padre João “pregou sobre o problema do operariado em nossos dias e de como só a santa religião o sabe resolver”. Ou seja: para quê sindicatos e lutas? Era o cajado de ferro.
Contudo, eu presenciei um momento diferente naquele pastor severo.
Quando a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima visitou Coruputuba, em 1953, Papai obteve do Padre João autorização para que eu fizesse a primeira comunhão, apesar de não ter ainda completado os sete anos de idade. Na véspera do grande dia, Padre João ouviu a minha primeira confissão, na salinha debaixo do coro. Ele, sentado, e eu, ajoelhado a seus pés.
Escarafunchei minha memoriazinha para arranjar algum pecado, porque confissão é para isto: contar os pecados. Achei só dois e contei para o Padre: 1− Certo dia eu falei que as asas dos anjos são feitas de penas; 2 – Outro dia, brincando de cirurgião, falei para o Zaga que no coração de um paciente eu encontrei Jesus, pois o paciente tinha acabado de comungar.
Foram estes os dois pecados de que me lembrei. Então, olhei para cima e vi que o Padre João, com as mãos postas diante dos lábios, estava reprimindo uma risadinha, com os lábios apertados como quem segura uma tosse, e eu não entendi o motivo daquilo.
Agora, que décadas se passaram e o meu cabelo vai ficando branco igual ao cabelo do Padre João, agora ouso concluir que o pastor do cajado de ferro tinha sim, na floresta do coração, uma clareira de ternura, mas bem lá dentro, escondida, dissimulada, como se ternura fosse assim uma espécie de defeito.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: normapenido.blogspot.com
Foto: blogdacrianca.com

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Os cachorros de Coruputuba - V



“Lulu”, ou “O amor conquista”
Da primeira cria da Doguinho ficamos com dois filhotes, conforme já contei (ver “Os cachorros de Coruputuba  I”, postado em 12/12/2011). Os outros, nós demos. Naquele tempo, não se vendia cachorrinho: dava-se. Demos o Lulu para o Seu Sebastião Leite, que morava na mesma rua nossa, a Av. Dr. Cícero Prado, perto da Capela.
Seu Sebastião Leite tinha uma lojinha na sala da casa. Seria assim uma loja de armarinhos: linhas, agulhas, sianinhas etc. E o Lulu foi para lá. Era um cachorrinho do mesmo tamanho do Neguinho, só que de orelhas espetadas, um ar muito atento. Era malhado de branco e preto, com predominância da cor preta.
Virou um cachorro grosso e troncudo, de pernas curtinhas e fortes, muito bravo. Latia nas pessoas, queria agredir os outros cães. Mas eu não me conformava com isto: um cachorrinho que nasceu na nossa casa, mamou na Doguinho, era irmão do Neguinho, como que podia ser bravo com a gente? Pois ele latia contra mim e meus irmãos, quando a gente passava lá. E, quando a gente ia comprar alguma coisa no Seu Sebastião Leite, precisava alguém intervir, que ele queria morder a gente. E ferrava umas lutas com o Neguinho. E com a Doguinho também, imagine, a mãe dele!
Um cachorro malvado.
Um dia, eu e meus irmãos, mas principalmente o Pedro, que era mais forte, nós abrimos um buracão no quintal para enterrar lixo. Ficou uma espécie de cacimba sem água, quase três metros de profundidade. Era lá no fundo, quase encostado no muro da fábrica, no canto que vizinhava com o quintal do Seu Fusco. E fomos jogando lixo lá, na intenção de mais tarde cobrir com terra e obter um composto orgânico para a horta.
Quando matamos as cabras a gente jogou as tripas e as cabeças dentro do buraco.
Daí, um dia cedo, o Pedro tinha ido no fundo do quintal e escutou um chorinho no buraco. Foi ver e era o Lulu, que estava lá dentro, tentando subir, mas nunca ia conseguir. Impossível. Quando o Lulu viu o Pedro, começou a rosnar. E o Pedro teve a paciência suficiente para esperar ali, só olhando... Depois de algum tempo o Lulu parou de rosnar e começou a choramingar.
Então o Pedro colocou no buraco uma escada improvisada, na verdade uma tranqueira de madeira, para o Lulu subir. Bem que o cachorro malvado tentou, mas não dava certo, ele não prosseguia, as pernas curtas não ajudavam. Afinal, o Pedro, que tantas vezes tinha sido insultado por aquele cachorro agressivo, sabe o que fez? Pois desceu no buraco para pegar o Lulu, que se encolheu um pouco, mas não fugiu nem rosnou, nem mostrou dentes. Aceitou o colo do Pedro, que subiu com a fera até poder soltá-la no quintal.
Lulu foi embora atravessando a cerca da casa do Seu Fusco.
Daquele dia em diante, nunca mais o Lulu latiu para a gente. Não foi só o Pedro que ele passou a respeitar. Ele estendeu para todos os irmãos a gratidão que ele devia só para o Pedro.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A migração dos bigodinhos


Final de fevereiro. Mas desde novembro, nos dias de chuva mansa, você escuta o bigodinho cantando nos ciprestes e nos flamboaiãs do Cemitério, no tamarindeiro do Bosque, nas paineiras do Mandu, nos eucaliptos de Coruputuba, nos pinheiros do Ribeirão Grande...
Viajando para Ubatuba, para Santo Antonio do Pinhal, parece que o canto desse passarinho acompanha a gente, vamos ouvi-lo nas árvores de todo lugar...
Bigodinho, por enquanto, não quer saber de mais nada. Só quer chacoalhar dentro do papo seus milhares de bolinhas de gude minúsculas e sonoras: chacoalha com força por uns segundos, para, aguarda as bolinhas silenciarem, dá um chacoalhãozinho e chacoalha forte tudo de novo, sem se mover no ramo do cinamomo da beira da estrada.
Mas são os últimos dias. Breve os bigodinhos vão embora. Estavam nidificando, tirando filhotinhos, tratando deles até que, pardinhos, também começaram a querer cantar. Então está na hora da migração: todos os bigodinhos que hoje estão cantando aqui no Sudeste – e também na Argentina, no Uruguai e no Paraguai – todos eles vão viajar.
A viagem fantástica: obedientes a um instinto de milhões de anos, voam sobre o centro do Brasil e o leste da Bolívia até atingir as regiões do oeste da Amazônia. Não vão para as florestas, mas para os campos naturais do Amazonas, do Acre... Vão comer as sementinhas dos capins de lá. Fugiram daqui, do frio do nosso inverno.
Por isto que ninguém vai escutar bigodinho cantando no Bosque ou no Cemitério em junho, julho... Bem capaz! Nunca!
Tempo de frio, a gente vai ver é andorinhão em bando, chiando nos fios dos postes da Vila Bourguese.



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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Primeiro Natal sem Papai


“Ceia de Natal”, de 1896, de Charles Green (1840-1898)


Foi o primeiro Natal sem presépio, porque Mamãe não deixou a gente fazer. Os caixotes permaneceram fechados em cima do guarda-roupa, numa espécie de homenagem ao contrário. Fazia parte do luto. Papai tinha morrido em outubro, ele, que todo ano desencaixotava as figuras, fazia as montanhas com papelão azul salpicado de tintas, espalhava a serragem natural e a tingida de verde, demarcava as estradinhas com conchinhas e pedrinhas, colocava cacos de espelhos no vão das montanhas...
Estava tudo muito recente, como iríamos conviver com aquela coisa tão alegre que era a visão de um presépio? Não combinaria com a tristeza do primeiro Natal sem Papai. Tudo apontava, portanto, para o primeiro Natal sem graça da nossa vida.
Mas minha madrinha Dona Chiquita mandou recado convidando a mim e ao Bosco para participar do almoço de Natal na casa dela. Mamãe deixou. Então, de manhã, nós dois, eu com nove anos e o Bosco com sete, já ficamos arrumados, com nossos paletozinhos com tarja preta, esperando a hora do nosso primeiro almoço fora de casa.
Ninguém da família nunca tinha almoçado fora de casa.
Ali pelas onze horas fomos avisados: está na hora de vocês irem lá. Só que Vovó ficou com dó de nós porque estávamos, pela primeira vez na vida, saindo de casa sem almoçar – imagina! – e falou: − Mas come um pouquinho de macarronada com frango, depois vocês vão lá!
O que não faz a falta de experiência: enchemos o bucho!
E fomos para a casa da Dona Chiquita, na Avenida Alberto Simi. A casa estava cheia. Pedi a bênção ao meu padrinho Bizinho, trombonista da Euterpe; à madrinha Jair; e ao padrinho Chiquito Faria, grande violonista e possuidor de uma lambreta – ou vespa, não sei. Brincamos com o Luiz Fernando e a Neusinha, a linda Neusinha dos cabelos encaracolados e olhos claros, e com outras crianças, priminhas dos dois.
O presépio deles era bonito, grande, cheio de engenhocas que se moviam sozinhas. Um trem elétrico, criação do padrinho Bizinho, corria pelos trilhos, passando entre os Reis Magos e os Pastores.
As pessoas falavam todas ao mesmo tempo, algumas vinham nos agradar. Um gato branco, enorme, deslizava debaixo das mesas.
Um espetáculo a mesa do almoço! Vimos, pela primeira vez na vida, um leitão assado inteiro, com uma maçã na boca. Isto, na mesa dos adultos, na sala. Nós, crianças, fomos encaminhados para uma mesinha na varanda de brilhante piso vermelho, cheia de vasos de samambaias e avencas.
E começou o almoço. Carnes de todo tipo, macarrão, arroz, farofa... Tudo era trazido para a mesa dos pequenos, todos comiam, estavam todos com muito apetite. Menos eu e o Bosco, os dois bocós que tinham almoçado antes do almoço... A gente beliscava, dava uma colheradinha no arroz, fingia que comia uma carninha...
Depois, vieram as sobremesas: manjar branco com calda de ameixas, pudim de leite condensado, doce de abóbora, arroz-doce... Nem isto a gente provou: não cabia mesmo, a gente estava quase passando mal.
Então eu escutei a Dona Chiquita explicando para o pessoal da sala: − É que eles estão tristes, coitadinhos, o pai morreu não faz nem dois meses.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: peregrinacultural.wordpress.com

domingo, 12 de fevereiro de 2012

What is the portuguese for...?


No ginásio, até o início da terceira série (hoje seria sétima série), eu criei fama de ótimo aluno, disciplinado e bom de nota. Com isto, conquistei prestígio entre os professores e os bons alunos. Mas faltava ser aceito pelos colegas mais alegres e irreverentes. Então, abandonei o meu lugar nas primeiras carteiras e fui me sentar mais no fundo da sala.
Iniciei uma estratégia de fazer piadas em voz baixa e continuar com cara de santo enquanto os colegas rachavam de rir. Comecei a passar cola para o pessoal (mas colar deles nunca!). Minhas notas caíram, os professores ficaram preocupados, mas eu comecei a me sentir melhor, mais crescido.
Ampliei o círculo de colegas. Já contava com a amizade dos alunos mais comportados: o Freitas, o Edmundo, o Paulo Marques, o Carneiro, o Sérgio Clive, o Koiti... Agora, passei a conviver mais com os irmãos Samahá, com o Cabral, o Vizaco, o Immediato, o Patinho...
Na aula do Prof. Celso, o Adilson se inclinou para o meu lado e cochichou: − “Paulo, pergunta o que é strip-tease!”
Achei boa a idéia.  Ergui a mão e o professor fez sinal para que eu falasse. Fui em frente: − “Teacher, what is the portuguese for strip-tease?”
O professor hesitou, em vez de responder de bate-pronto como sempre fazia. Estranhei. Ele pensou, pensou e começou a contar uma história: Tinha visto na televisão recentemente um programa em que uma mulher estava vestida com determinada roupa e foi coberta por uma espécie de capa e alguém lhe entregou uma outra roupa. Depois de certa movimentação, foi retirada a capa protetora e eis que surgiu a moça agora vestida com a nova roupa. Concluiu o professor: − “No intervalo de tempo entre estar vestida com uma roupa e passar a ficar vestida com outra roupa...  a moça ficou em estado de strip-tease”.  
Talvez eu tenha ficado vermelho, não sei. Mas fiquei chateado com a chateação do professor. Eu gostava tanto dele, do seu jeito de ensinar inglês falando somente em inglês. Para responder a minha pergunta ele tinha sido obrigado a abandonar essa técnica e, pela primeira vez, tinha falado longamente em português na sala de aula.
E, de fato, eu não sabia o que era strip-tease. Garoto da roça, com quatorze anos, sem televisão em casa... Já tinha ouvido a expressão, mas não sabia o significado. E não tinha relacionado as risadinhas da turma com o pedido que o Samahá maior estava me fazendo.
As risadinhas viraram gargalhadinhas abafadas enquanto o professor me respondia. E a classe era mista, as meninas me olharam com estranheza.
Mas fiquei bem popular na turma do fundão. E o professor Celso, vai ver que ele sempre ficou pensando que eu tinha feito uma pergunta só para encostá-lo na parede.
But I did not want to bore you, Teacher!
***
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

A televisão em Coruputuba


Primeiro, a gente sabia que tinha televisão no Chalé. Mas isto era fora da nossa imaginação. A primeira antena de TV que pudemos ver - bem no alto de uma torre - foi na casa do Seu Fonseca. Mas ali ninguém entrava. A gente só podia mesmo ver era a enorme antena, enquanto aguardava na fila para pegar leite na Fazenda.

Mas então o Seu Enéas comprou televisão! Que alegria! Alguém da nossa rua tinha televisão! Lembrando, o Seu Enéas era irmão do Seu Alcindo, que era o "Prefeito" de Coruputuba. Seu Enéas era casado com Dona Sinhá. Seus filhos eram a Dagmar, o Valdemar e a Maria Amélia.

Seu Enéas − agora entendemos − era um Homem Bom. A criançada da rua começou a lotar a calçada, para ver a televisão pela janela. Mas não dava muito certo, entre a cerca e a janela havia o jardinzinho. Então o Seu Enéas deixava a gente entrar no jardinzinho para ficar de nariz colado na vidraça, vendo aquelas imagens em preto e branco, uma luz azulada...


Depois de um tempo, o Seu Enéas já deixava a gente entrar na sala. A porta ficava escancarada, quem chegasse entrava e ia sentando no sofá. Se já estivesse lotado, a gente sentava no chão. E ficava vendo: Rin-Tim-Tim, Bonanza, O Homem de Virgínia, O Fugitivo, I love Lucy... Eu adorava as propagandas. Tinha a propaganda das Cestas de Natal Amaral: "Acaba de chegar / no meu lar / a cesta de natal / Amaral / Bom Natal / Bom Natal!" E a dos Cobertores Parayba: "Já é hora de dormir / não espere mamãe mandar / um bom sono pra você / e um alegre despertar"...

Dona Sinhá quase não falava com a gente. Parecia que a gente estava incomodando... Nossa, vejam o que eu disse! É claro que a gente incomodava muito! Apesar de que a gente ficava quase quieta. A não ser quando a coisa ficava muito engraçada. Um dia o canal saiu do ar e alguém falou: A televisão saiu do vento...

E, numa noite de muito calor, a Dona Sinhá trouxe para a sala uma jarra cheia de limonada gelada (naquela casa havia geladeira!). Todos ficamos meio espantados e emocionados com aquela delicadeza: éramos uns entrões invadindo o lar – e ainda ganhávamos limonada!

Canais? Eram só a TV Tupi, canal 4, e a TV Rio, Canal 13. Este canal então fazia um barulhão, um ronco feio, principalmente quando a imagem tinha muita área branca.

Mais tarde, o clube da Industrial comprou um aparelho de TV, que foi instalado no salão de baile, em cima da leiteria.


Vovó viu a TV
Minha vovó Ana Emília só foi ver um aparelho de TV quando finalmente nós compramos, na Casa Farah. Vovó ficava vendo os programas (sem parar de manusear o terço...) e um dia eu perguntei a ela se a TV realmente era do jeito que ela pensava que era antes de conhecer.

Então ela respondeu que não. Que antes ela pensava que a TV era uma coisa fina, como um quadro que fosse possível pendurar na parede. Ela não imaginava que seria uma coisa mais parecida com uma caixa (naquele tempo, um caixote...).

Puxa vida, Vovó! Já se passaram tantos anos, tantos... e agora estão aparecendo umas tvs fininhas que nem as que a senhora imaginava!

Quando eu perguntei isto eu era um rapazinho de dezessete anos.
Envelheço quando lembro.

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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: antenadireta.wordpress.com
Foto das casas: A casa mais próxima era do Seu Enéas. A segunda, da Dona Basta. A terceira, do Seu Sebastião Leite. Foto de Luciano R. Oliveira, em Panoramio, Google Earth

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Como aprendi a gostar de ler

Como foi que aprendi a gostar de ler? Provavelmente vendo Papai ler, percebendo o seu carinho com os livros... E ele nunca achou ruim quando a gente pegava os livros dele. Mas foi decisiva a atuação de minha professora do segundo ano do primário, Dona Célia Lopes.
Ano de 1956. Grupo Escolar Rural “Antonio Bicudo Leme”, na Fazenda Coruputuba. Quase no final da aula, período das onze às duas, todos tinham pressa em guardar o material, cruzar os braços sobre a carteira e fazer completo silêncio. Só então Dona Célia abria a gaveta e tirava o livro “Uma história e depois... outras”. E começava a ler, contando-nos a continuação da história do cão “Lobo-Bom”, que vivia no sítio do vovô e se afeiçoou pelo casal de netos em certas férias da escola e depois, quando as crianças partiram, partiu também atrás do trem e viveu muitas aventuras, muito sofrimento e cansaço, até chegar à cidade... E a história prosseguia...
A história prosseguia, um pedacinho por dia, provocando minha imaginação de criança de oito, nove anos... Aqueles minutos no final da aula de cada dia, antes que a sineta da Dona Luíza Assoni começasse a soar pelos corredores... Aqueles minutos eram aguardados com ansiedade, como hoje se espera pelo capítulo da novela da TV.
Quando finalmente chegou a última página do livro, com o final da história do “Lobo-Bom”, foi uma tristeza geral: acabou... Mas Dona Célia passou para a segunda fase de seu plano: falou sobre a biblioteca da escola, contou que o livro estava à disposição dos alunos, e havia outros livros, também interessantes, e nos ensinou como fazer a inscrição que nos habilitaria a emprestar tais livros, podendo levá-los para casa.
Toda noite, daí em diante, havia em casa uma sessão de leitura, comandada pelo Pedro, que já estava no ginásio e lia em voz alta com muita clareza, usando os tons adequados a cada passagem. Eu e meus irmãos, sobre a cama ou ao lado do fogão, viajávamos pelos mais diferentes pontos do mundo, conhecendo povos, costumes, animais, rios, florestas. Viajávamos, nós, tão pobrezinhos... Levados pelas asas dos livros da biblioteca da escola, livros cheios de bonitas letras e ilustrações atraentes, livros com um cheiro especial de relíquias, encapados de papelão azul...
Dona Célia, Deus a abençoe!
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Capítulo do livro “ACONTECEU NA ESCOLA”, de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes – Registro na Biblioteca Nacional n. 344.938 – 22.03.2005 – Todos os direitos reservados.
Foto: Arquivo Histórico Waldomiro Benedito de Abreu