O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

domingo, 29 de janeiro de 2012

- Vai goiabada, professor?


Era o meio de uma manhã de trabalho na AISA. Os barulhos costumeiros da Anodização: o entrechocar de peças no Banho, o rugido das politrizes no Polimento. As conversas em voz muito alta para encobrir o ruído ambiente. A neblina que subia dos tanques do eletrolítico ia se acumulando junto ao telhado.
Eu estava controlando as chapas largas da Philco, passando a estopa, olhando rapidinho, batendo o carimbo de aprovação, pegando outra chapa, tudo bem ligeiro. Lá no outro lado da Embalagem, o Munhoz abriu a gaveta, pegou a lata de goiabada, fatiou com o canivete e já ia se servindo. Ele me viu e me chamou:
− Vai goiabada, professor?
Fiz que não, obrigado. Eu não queria goiabada, naquela hora. Tinha acabado de tomar café, estava trabalhando acelerado, e depois, se aceitasse, ia ter que atravessar todo o galpão só para ir lá do outro lado das mesas pegar um pedaço de doce. Parecia que estava enrolando o serviço, tanta chapa larga e maçaneta da GM para controlar, os supervisores passando toda hora, o Mauro Boca sempre atento, o Cramer de olho...
Mas o Munhoz insistiu:
− Ô louco, professor, pega aí!
Puxa vida. Sou novo aqui na AISA, todo mundo me chama de professor, se eu não aceito vai parecer que sou muito soberbo, querendo ser mais que os outros... Está bem, vou lá aceitar a goiabada! Larguei a estopa na mesa emborrachada, as chapas largas amarelas na bandeja, fui contornando as mesas.
O Munhoz me esperava com um grande sorriso, a fatia de goiabada espetada no canivete. − Obrigado, Munhoz! − fui dizendo e estendi a mão para pegar. Mas o Munhoz enfiou o doce na boca e ficou mastigando e dando risada para mim. A seção inteira dava risada, o Baixinho, o Araújo, o Dadá, o André, o Patinho, o Vanderley...
Olhando para a cara do Munhoz, pensei um nome bem feio para a mãe dele, mas fiquei caladíssimo. Virei as costas e fui voltando rápido para o meu lugar, retomar o serviço, enquanto ele bradava: − Nossa, professor, que isso, levou a mal?
Cheguei na minha mesa, retomei o exame das chapas largas. O Munhoz veio atrás de mim: − Ô louco, professor, nossa! Que isso, eu tava brincando, não precisava levar a mal. Toma aí, pega a goiabada!
E me estendia uma nova fatia do doce, espetada na ponta do canivete.
Foi um dos grandes momentos de hesitação na minha vida. Pegava ou não pegava? E se eu estendesse a mão e de novo ele engolisse o doce na minha cara? E se eu respondesse que não queria doce nenhum e ele ficasse ali insistindo, o que eu ia fazer?
A seção inteira parou de examinar e de embalar as peças de alumínio. Resolvi: se ele repetir a palhaçada vou arrancar a lata da mão dele na marra. Pensei: mas se eu cortar a mão na lata, ou no canivete?
Bem devagar, estendi a mão e peguei o doce. O Munhoz ficou sorrindo e falou:
− Pensou que eu ia sacanear de novo, né professor?
Então, nós dois ficamos mastigando goiabada e dando risada junto.
*     *     *

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: overmundo.com.br
Foto: Filme Tempos Modernos – Charlie Chaplin

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

“Va, pensiero” – O poder do teatro


Na primeira metade dos anos 1800, a Itália, ainda fragmentada em diversos reinos, estava sob o domínio do Império Austro-húngaro. Várias vezes Giuseppe Verdi havia tentado apresentar peças que incentivassem a luta pela unificação e a independência. Mas a censura austríaca não permitia.
No entanto, em 1842, no Teatro Scala de Milão, Verdi estreava sua peça Nabuco. A censura austríaca havia cochilado, julgando que se tratava de uma peça religiosa,  pois era baseada no texto bíblico sobre a época em que os hebreus foram levados cativos para a Babilônia, governada por Nabucodonosor.
Terceira parte da ópera.
O coro dos hebreus acorrentados começa a cantar o Va, pensiero:

Vai, pensamento, em asas douradas,
Vai, pousa nos declives, nas colinas,
Onde exalam mornas e suaves
As doces brisas do solo natal!

Do Jordão saúda as margens,
De Sião, as torres destruídas...
Oh, pátria minha, tão bela e perdida!
Oh, lembrança tão querida e fatal!

Harpa de ouro das fatídicas profecias,
Porque estás muda, pendente do salgueiro?
A memória no peito reaviva
E nos fala de um tempo que se foi!

Ou, semelhante a Salomão nos fatos,
Suscites um som de lamento cru
Ou te inspire o Senhor uma melodia
Que traga coragem a quem padece.

Que traga coragem a quem padece
Que traga coragem a quem padece,
A quem padece traga força.

Já na segunda estrofe, o público entendeu a mensagem. Por trás da tristeza do povo hebreu, Verdi estava era falando da Itália espezinhada pelo domínio estrangeiro. As pessoas se ergueram, viraram-se de frente para as autoridades austríacas que assistiam ao espetáculo nas frisas e nos camarotes e cantaram junto com o coro dos hebreus: “uma melodia que traga coragem a quem padece...”.
Aí começou a revolução pela unificação da Itália e pela independência. A inscrição VERDI começou a aparecer nos muros. Uma homenagem ao grande compositor italiano? Sim, mas ao mesmo tempo um código de guerra: Vitor Emamuel Rei da Itália, pois era em torno desse rei do Piemonte e da Sabóia que os nacionalistas queriam se unir para fazer da Itália uma só nação.

*   *   *
Perguntaram-me há pouco sobre o que eu penso do Teatro.
Vós, artistas, que no dia a dia são muitas vezes envolvidos pela mesma realidade que nos sufoca igualmente a todos humanos, quando adentrais o palco estais subindo a um sagrado altar. O poder divinatório do palco vos transforma, para que possais também nos transformar. É o poder divinatório do palco que vos permite movimentar a sociedade, dizer o indizível, revelar o oculto, celebrar a vida, questionar os paradigmas que pareciam imutáveis.
Uma luz emana de vossas apresentações. A luz que flui de vossos corpos, de vossas vozes, de vossos olhos, é maior que os fachos de todos os canhões e holofotes do mundo.
Artistas, no palco, vós sois deuses!
*   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto: infoescola.com

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Fui a Coruputuba

Fui a Coruputuba, num dia de festa, para reencontrar os amigos daquele tempo, para ouvir de novo os sinos da Capela, para mais uma vez reparar nas palmas dos coqueiros agitando-se na brisa, para procurar os vestígios da casa onde eu morei e do campinho onde a gente batia bola esperando a hora de começar o jogo de verdade.
Fui até o Largo, mas não tinha mais a torneira para a gente encher o garrafão.
O Bar Simpatia fechado, ninguém jogando bilhar.
A Dona Alice não abriu a leiteria.
O Seu João não abriu a barbearia.
Na porta do meio não tinha a escalação do time para o jogo.
O Seu Zé Geraldo não estava na porta do cinema, vigiando a fila.
Não achei na Padaria a Dona Naná.
A Escola Martinico Prado, que já tinha sido Escola Antonio Bicudo Leme, estava quieta.
Na farmácia, cadê o Seu Salgado, o Seu Augusto, cadê a Shirley, a Ana Clara?
Fui rodear os coqueiros da igreja, olhando os cachos de coquinho maduro, e o Seu Alcindo não veio correndo de bicicleta, apitando. E o Seu Machado não estava sentado na porta da Capela.
Meu pai, o Professor Francisco, não ajudou a Missa. Não foi ele quem acendeu a lâmpada do Santíssimo.
A Avenida Alberto Simi inteira desapareceu.
A Avenida Cícero Prado ainda tem algumas casas: a da Dona Marina, a do Seu Enéas, da Dona Basta, do Seu Sebastião Leite, a do Seu Dimas, a da Dona Antônia. Sumiram as casas do Seu Luiz Crepaldi e todas as outras até a do Seu João da Ponta. Os tijolos do alicerce da minha casa estão lá, escondidos na grama.
Oportunidade de reviver a infância, a adolescência. A oportunidade de reencontrar os conhecidos, todos envelhecidos e quase todos bem mais pesados, como eu também estou. Mas, mesmo assim, foi possível mais uma vez subir a escada da torre da igreja para, lá de cima, ficar procurando com o olhar saudoso o que não existe mais: a Vila Tanque, a Vila Jacarandá, a Vila Maria, a Vila Esperança...
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Agostinho San Martin Filho (Álbum CIDADE DE PINDAMONHANGABA, 1955)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Os carneiros

Eu me encantava com os carneiros passando em frente de casa, indo em direção ao Portão, talvez para pastarem na várzea. Iam acompanhando o pastor que agitava um pequeno latão cheio de milho, fazendo um barulhinho que atraía aqueles animais obedientes.
Anos mais tarde, lendo Bilac, aprendi que aquele equipamento se chamava avena, por causa dos grãos de aveia que no Oriente alimentavam os carneiros.
Um dia cedo, fomos eu e o Bosco (eu tinha doze anos e o Bosco dez) buscar leite na fazenda. Enquanto esperávamos a hora da distribuição, saímos zanzando pelos pastos e currais.
Esses passeios eram sempre meio aventurosos. Uma vez, tive que fugir de uns bois que estavam assustados. Outra vez, tivemos que fugir de uma vaca que estava muito nervosa porque tinha tido bezerro na noite anterior. No mínimo, se não acontecia nada perigoso, a gente ficava trepado na cerca do curral vendo o touro holandês, com fama de malvado. Lembro do Timbó, que urrava e cavoucava o chão, jogando terra para bem longe e bem alto.
Mas voltando ao dia dos carneiros:
Eu e o Bosco vimos que o rebanho estava muito longe, lá embaixo, perto da cerca que dividia com o terreno da fábrica. Mas havia dois carneirinhos recém nascidos, ali atrás do curral, perto daquela casa de força que parecia uma torre. O Zaga achava que parecia um moinho, ele sempre com as idéias meio europeizadas.
Eu e o Bosco ficamos com dó dos carneirinhos-bebê. Tivemos uma idéia generosa. Tivemos uma boa ideia.
Meu Deus, quantas vezes eu já sofri por ter tido uma boa idéia...
Então pegamos os carneirinhos no colo e fomos descendo o morro em direção ao rebanho, para levar os filhotinhos para a sua mamãe.
Só que os carneiros adultos não gostaram de nossa aproximação e começaram a se afastar. Começamos a andar mais depressa para alcançá-los. Então eles dispararam em direção à fábrica e foram, um após o outro, igual nas histórias em quadrinhos, pulando a cerca de arame farpado.
Ficamos apavorados com aquele êxodo de carneiros. Largamos no chão os filhotinhos e voltamos para a fila do leite com aquela cara lavada de cachorro que fez o que não devia.
De repente me falam: Sua mãe, Paulo!
Minha mãe vinha chegando bufando, olhos arregalados, a boca apertada que ela sabia fazer quando estava furiosa. Tirou um chinelo do pé e me bateu na cara com ele. Na frente de todas as crianças da fila. Mas me doeu mais não foi nem a chinelada na cara, nem a vergonha. Foi ela falar que ia me tirar do ginásio.
Eu tinha acabado de entrar no ginásio, depois de um bruto exame de admissão etc.
Fomos todos para casa. Eu, o Bosco, minha mãe e alguns irmãos que tinham vindo com ela. Chorei muito pensando que de fato ela ia me tirar do ginásio.
Aos poucos fiquei sabendo dos outros capítulos da história.
Acontece que o Seu Fonseca tinha ido lá em casa, de jipe. Mandou chamar minha mãe e no portão mesmo declarou que ia tomar a casa da gente, porque os filhos dela não prestavam, eram desordeiros e maus. Contou para que eu e o Bosco assustamos os carneiros para eles pularem a cerca de arame farpado e dois filhotes ficaram presos no arame e morreram porque as tripas saíram da barriga rasgada.
Esta parte a gente não sabia.
Puxa vida, eu e meu irmão não fizemos nenhuma maldade, apenas não podíamos, na ocasião, prever o resultado de nossa pretendida boa ação.
Mas a minha mãe não me tirou do ginásio coisa nenhuma. Continuei estudando normalmente, todo dia pegando o ônibus amarelo dos Irmãos Valentini. E de manhã cedo ainda ia buscar leite na fazenda, com o Bosco. Só que nunca mais descemos para o pasto dos carneiros.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos: baixaki.com.br e fotosdebichos.com.br

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Tudo pela arte



O Doutor Luiz Gonzaga da Silva Marcondes é poeta, promotor público aposentado, professor de direito, declamador e é coruputubense. Hoje mora em Limeira. É o Zaga, meu irmão nascido dois anos antes de mim.
No início da adolescência estávamos interessadíssimos em pintura. Observávamos o lago quando íamos buscar leite na fazenda, olhávamos as nuvens sobre os coqueiros da igreja... e isto nos dava muita vontade de pintar. Mas, de que jeito? A gente não tinha nem lápis de cor...
Acontece que nessa época apareceu em Coruputuba o Seu Arinos, que chegou cheio de novidades. Uma delas foi o Show de Calouros no cinema, aos domingos de manhã (depois da missa, pois faltar à missa era pecado mortal).
No show, quem se apresentasse ganhava uma caixa de lápis de cor, com seis lápis pequenos. Puxa vida, falei para o Zaga, se a gente participasse, ganhava a caixinha e já dava para começar a exercitar os talentos artísticos. Mas quem iria cantar no cinema? Ora, o Zaga decidiu: ele ia. E ia cantar o “Pai Nosso dos Namorados”. Apoiei a decisão, assim eu não ia me expor, mas continuaria tendo participação na sociedade artística. Afinal, a ideia tinha sido minha.
Domingo, o cinema cheio, ele foi chamado, subiu, acertou o tom com o Martins (futuro Coru Boys), foi ao microfone e mandou ver: “Pai nosso que estais no céu, conservai o meu amor, não permiti por favor, entre nós dois um adeus... Afastai os inimigos da minha vida com ela, conservai os olhos dela sempre nos olhos meus. Se acaso não for este o meu destino, por vosso manto divino, dai-me um viver sem ninguém. Para ser infeliz prefiro sentir saudade. Seja feita a vossa vontaAaAaAaaAaade, amém...”
Eu ali na plateia morrendo de vergonha e com medo de que ele desafinasse. Mas foi tudo bem! Palmas para o Zaga! Desceu do palco com a caixinha de lápis de cor, e lá fomos nós dois pintar as maravilhosas paisagens do bairro, nos blocos de rascunho que a gente ganhava da Fábrica de Papel.
O Bosco ficou com inveja (Bosco tem dois anos menos que eu). No domingo seguinte, compareceu ao cinema e se inscreveu para cantar a “Boneca Cobiçada” (Quando eu te conheci, do amor desiludida...).
Chegou o momento esperado: o Seu Arinos chamou o Bosco! Que, em vez de atender à convocação, abaixou-se encolhidinho, passou por baixo dos bancos e fugiu correndo para casa.
O público ficou sem conhecer o talento do Bosco.
Verdade que, décadas mais tarde, ele formou o conjunto Vox Populi junto com o Araújo (Prof. Pardal) e outros amigos e começou a tocar nas igrejas e nas praças. Tocou até na Basílica de Aparecida.
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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Anamaria Jorio