O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Puxando boi na cheia

O Jalo estava contente da vida. Entrava na água montado no burro, em pelo, com o laço na mão. Ele mesmo não nadava, não sabia. Quem nadava era o burro. Lá longe, nas ilhas, estava cheio de boi assustado com a água que continuava subindo, o Paraíba tinha engrossado de noite. Na ilha, laçava um boi e vinha puxando até a água. O burro, nadando, acabava rebocando o bicho que, assustado, queria sair para o lado, mas o burro soprava, não queria água nas narinas, aguentava o tranco e lá iam eles, até chegar na terra mais alta. E isto ia continuar até de noite, se não fosse o Seu Joca aparecer no alto do barranco, batendo o chicotinho na bota e fazendo com o braço: Vem!
O Jalo esfriou, perdeu a graça. O Zé Campero falava: “Ah lá, Jalo, o chefe tá chamando!” E dava risada, enquanto puxava mais um boizão. Dava risada a turma toda: O Zé Campero, o Renor, o Nilo, o Arlindo, cada um na sua montaria, espadanando água e rindo do aperto do Jalo.
Caramba, e tinham sido eles mesmos que puseram fogo no Jalo: “Vamo puxá boi na varge, vem judá a gente, ocê já tá grandinho, já é quase um home”. E agora ficavam tirando sarro só porque o Jalo ficou branco quando viu o Seu Joca no alto do barranco.
Bem que o Seu Joca tinha negado o pedido de manhã cedo: “Não vai não, que aquilo não é serviço procê. Pegue o burro, arreie e vai pra tuia, lá tem outras coisa procê fazê”. E o Seu Joca era o chefe, só abaixo do Seu Fonseca, que só era abaixo do Doutor Cícero, dono de Coruputuba.
Mas o diabo tenta os moleques que não têm juízo. Depois que tomou café com leite e pão com manteiga – e isto na cozinha do Seu Joca, junto com o Edésio, que era a mesma coisa que um irmão, com a Dona servindo o café para ele que nem que fosse um filho – pois não é que o Jalo resolveu desarrear o burro que já estava na carroça, montou em pelo e pocotó pocotó, lá foi ele para a vargem!
Ê festa! O Paraíba tinha virado um Mar! Os campeiros já estavam puxando boi fazia tempo quando o Jalo entrou com burro e tudo, espirrando água, feliz com a recepção: “Aí, Jalo, num é que ocê veio memo!”.
Agora tudo mudou de repente. Jalo foi levando o burro, puxando o boi, até o seco. Soltou o boi e veio que nem um cachorrinho de rabo baixo: “Senhor, Seu Joca?” E o Seu Joca só disse: “Vai pra casa. Ocê não trabaia mais hoje. De tarde vô falá com seu pai. Se amanhã cedo ocê não tivé com as costa cortada de rêio, eu que vô surrá ocê”.
Foi pra casa. O Pai estava lá: “Ué, cabô o serviço já?” E o Jalo, fingido: “Cabô mais cedo, Pai”. E começou a ajudar o Pai a tratar dos passarinhos. “Ué, que que deu nocê, judano eu?” E ficaram os dois limpando as gaiolas, soprando o alpiste, trocando a água e de repente o barulhinho da charrete do Seu Joca.
Jalo vazou para o fundo do quintal, ficou vendo o Pai conversando com o Seu Joca no portão. Depois, o Seu Joca subiu na charrete e foi embora e o Pai foi falar com a Mãe e depois veio vindo para o fundo do quintal com o relho dobrado na mão. A Mãe veio atrás com a vara de amora.
Jalo abaixou no chão, escondido nos pés de mandioca, ficou vendo as botas do Pai e os chinelos da Mãe, de um lado para o outro. Ele se esgueirava, quietinho, agachado. Pai e Mãe resmungando que já estava escurecendo. Desistiram. O Pai falou: “Vamo entrá, dexa ele, vai escurecê, daqui a pôco aparece o Home de Terno Branco, ele vai vê só”.
O Home de Terno Branco era a pior sombração da roça.
Pai e Mãe entraram, fecharam a porta. Escureceu. Encheu de vagalume, coruja piou, o céu entupiu de estrela e o Jalo, morrendo de medo, teve que se entregar. Apanhou, apanhou muito, de relho e de vara. Gemeu, mas não reclamou, sabia que estava errado. Terminada a surra, a Mãe veio com a vasilha de salmoura, aquilo ardeu mais do que as relhadas, mas era para não arruinar.
No dia seguinte cedinho já estava na frente da casa do Seu Joca. O Edésio chamou para tomar café com leite e pão com manteiga. Em casa era só café preto, às vezes com farinha de milho, no geral só o café mesmo. Jalo entrou, que nem um cachorrinho alegre, empurrando o Edésio, que empurrava ele, igual todo dia.
Seu Joca entrou na cozinha, esperou que ele acabasse o café. Então chegou por trás e falou: “Dexa eu vê”. Levantou a blusa e a camisa do Jalo. As marcas do relho estavam vermelhas e inchadas, nas costas e nos ombros. Seu Joca falou: “Tá bão”. E baixou de novo a camisa rala e a blusinha velha do Jalo.
Depois Seu Joca falou: “Ocê agora tá com reiva de mim. Mais quano ocê crescê, vai lembrá que eu fiz isso foi pra cuidá docê. Não foi de reiva. E vamo trabaiá que tem muita coisa pra fazê!”.
Até agora, que o Jalo já está velho, os olhos dele enchem de água quando ele lembra.

  *   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, conforme narração feita por Cezário Barbosa, o Jalo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário