O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Os cachorros de Coruputuba - IV

O cachorro da Pensão
A Cooperativa e a Pensão

O Negrinho era um cachorro preto, baixo, corpulento e maldoso. Pertencia à Dona Eleuzina, dona da Pensão, casada com o Seu Eurico. Não confundir com o meu cachorrinho Neguinho, que, aliás, era quase branco.
Pois bem, o Negrinho ficava deitado na calçada em frente à porta da Pensão (onde depois foi o Clube). Dali de seu posto de observação, ele tomava conta de todo o Largo. Observava quem vinha buscar água na Caixa d’Água, quem vinha jogar bola na Quadra, quem ia ao Armazém, ao Açougue... Quando encasquetava, ele vinha latindo furioso para cima da pessoa.
Houve um tempo em que minha família pegava almoço de marmita na Pensão. Foi assim que eu conheci bife na chapa, com cebola. Eu sempre ia buscar a marmita com o meu irmão Bosquinho.
E o pior era que o Negrinho tinha cismado com o Bosco. Toda vez rosnava para ele, latia... E eu, como sempre, ficava protegendo o Bosco. Mas por dentro também morria de medo daquele cachorro com ar de malvado.
Tinha um pessoal que ficava jogando ping-pong na Pensão. Eram os filhos do Seu Isaías, mais o Ademir e o Aurélio do Seu Totóizinho, e mais uma turma.
Um dia, eu e o Bosco entramos para pegar o almoço e o Negrinho estava deitado perto do fogão, roendo um baita osso. Pois não é que um dos filhos do Seu Isaías, acho que o Airton, só de sacanagem passou correndo perto do fogão, roubou o osso do Negrinho e jogou o osso perto do pé do Bosco! O Negrinho veio correndo, bufando.
O Bosco saiu correndo e o Negrinho mordeu os fundilhos das calças dele. Igual ao que acontece em desenho animado. Toda a molecada riu muito. Olhei e vi que os adultos também estavam achando engraçado.
Silenciosamente, jurei vingança.
Naquela mesma tarde, procurei no quintal e encontrei os restos de uma cadeirona de braços, que eu sabia que estava jogada perto das bananeiras. Serrei uma das pernas da cadeira. Era de seção quadrada, com quinas vivas. Usando os conhecimentos que eu estava adquirindo nas aulas de Trabalhos Manuais do Prof. Del Mônaco, com a grosa desbastei os ângulos da parte mais fina da perna da cadeira. Com a lixa, dei um acabamento caprichado.
Ficou um belíssimo porrete, confortável para segurar, sendo que a ponta ficou bem mais pesada, porque a perna da cadeira era daquelas que vão afinando em direção ao chão. Agora eu me sentia seguro.
No dia seguinte, na hora certa, eu e o Bosco pegamos as marmitas e fomos para a Pensão. Parece que o Negrinho tinha sido alertado. Pela primeira vez, sem qualquer aviso ou provocação, ele veio direto para cima de mim, saindo de seu canto perto do fogão. Tirei da cinta o porrete: estava preparado para a luta. O Bosco ficou mais de longe.
Negrinho deu uns três pulos para me pegar, eu recuando devagar e preparando o golpe. Quando vi a cabeçona dele no ar, os dentes brancos perto de mim, vibrei o golpe com toda a minha força de moleque de quatorze anos. O porrete pegou bem na base da orelha esquerda, senti na mão a resistência do osso do crânio.
O cachorrão caiu de quatro. Em silêncio, virou-me as costas. Murcho, caminhou até o fogão e ali se deitou e ficou quieto. Todo mundo na Pensão também ficou quieto. Ninguém me censurou, ninguém elogiou, ninguém comentou nada. Dona Eleuzina encheu nossas marmitas em silêncio. Com as marmitas cheias, saímos para o Largo. Eu estava quieto de tão contente. O Bosco falou: Nossa, Paulo...
O Largo
Daquele dia em diante, toda a vez que a gente ia buscar água no Largo, ou ia na Cooperativa, se o Negrinho estivesse na calçada tomando conta, ele levantava e, de cabeça baixa, entrava na Pensão. E toda vez que a gente ia buscar o almoço, ele ficava quietinho, deitado aos pés da Dona Eleuzina.
Foi a última vez que eu precisei usar a força bruta.
*     *     *

Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos de Agostinho San Martin Filho (Álbum CIDADE DE PINDAMONHANGABA, 1955)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Os cachorros de Coruputuba - III

O Jipe e a Lila
Tia Cida e Tio Sebastião Enfermeiro moravam na Av. Alberto Simi

O Jipe e a Lila eram pequenos, gorduchos, de perninhas curtas e grossas, malhados de branco e preto. Latiam muito e eu tinha medo deles. Do alto do colo do meu pai eu via os dois lá embaixo, pulando e latindo muito bravinhos.

Eram dos meus tios. Minha tia Cida era irmã do meu pai. Era casada com o Seu Sebastião Enfermeiro, um dos homens de cara mais brava de Coruputuba e eu tinha medo e admiração por aquele homem poderoso, de fala grossa, uma risada que se ouvia a um quilômetro. E dono da mais incrementada bicicleta que eu já vi.

A bicicleta do Seu Sebastião Enfermeiro era cheia de flâmulas, campainhas, faróis, tudo brilhante e colorido. O farol, tenho que contar para vocês, recentemente chegados ao mundo da tecnologia. O farol não era a pilha não. Era alimentado pelo dínamo, que parecia uma garrafinha de metal, cuja cabeça parecia uma tampa que ficava girando encostada no pneu traseiro. Quanto mais a bicicleta corria, mais forte ficava a luz do farol.

A seleta (tem que pronunciar selêta - e hoje chamam de selim...) tinha uma capa almofadada cheia de franjas. A bicicleta dele parecia um cavalo ricamente arreado. Na memória ainda estou vendo o meu Tio Bastião na sua bicicletona pesada, toda lubrificada e brilhante, deslizando firme e vagarosa entre os eucaliptos perto do campo de futebol.

Tio Bastião e tia Cida moravam na Av. Alberto Simi, diante da arquibancada. Pegado com a casa da Shirley de um lado e a casa do Lauro (Alaor) do outro. A casa deles dava fundo para o cafezal. Eu achava interessante no fundo do quintal a gente ter um portãozinho que saía para o mundo de pés de café. Andando pelo cafezal a gente ia passando pelo fundo das casas dos vizinhos, reparando nas laranjeiras carregadas no quintal da Dona Nanca, na baia do cavalo da charrete do Seu Alcindo...

Na cozinha da Tia Cida tinha uma coisa interessantísima para meus olhos de menino curioso. No telhado (a cozinha não tinha forro) no telhado tinha uma telha de vidro, que ajudava a clarear a cozinha, que não dava janela para lugar nenhum, era preta de fumaça do fogão a lenha.

Mas voltemos ao Jipe e à Lila.

Foi a primeira vez que ouvi falar de cachorro que dormia dentro de casa e subia na cama dos donos. Hoje é tão comum, até aqui em casa... Tio Bastião e Tia Cida não tinham filhos. E a gente falava que era por isto que eles tratavam os cães como se fossem gente.
Mas eis que Tia Cida engravidou. E logo depois que nasceu o meu querido priminho Valério (outro dia conto as histórias do Valério...), os cãezinhos foram ficando tristinhos, jururus. Não passou muito tempo, morreram.

Depois o Tio Bastião e a Tia Cida tiveram outros cães, inclusive o Xerém, que era feinho. Tio Bastião falava que o Xerém era tão feio, mas tão feio que era até bonito de tão feio.

*     *     *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Foto de Patrick Assumpção

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Fala do Carpinteiro, no primeiro Natal


“Deu a luz ao menino na montanha.
Ficou feliz, mas não ficou contente.
Chora – e nunca vi uma dor tamanha –
e às vezes fala dele alegremente.

Desde que viu a linda luz estranha,
não conversa mais como antigamente.
Diz que essa luz – que eu não vejo – a acompanha
como ocorreu aos magos do Oriente.

Minha amada! Na sua cabecinha,
um arcanjo ilumina esta casinha
e a nossa história cumpre alguma lei...

Diz que será sempre uma virgem pobre,
que não sou pai, mas um amigo nobre,
e que o menino um dia vai ser rei...”

*     *     *     *

Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Puxando boi na cheia

O Jalo estava contente da vida. Entrava na água montado no burro, em pelo, com o laço na mão. Ele mesmo não nadava, não sabia. Quem nadava era o burro. Lá longe, nas ilhas, estava cheio de boi assustado com a água que continuava subindo, o Paraíba tinha engrossado de noite. Na ilha, laçava um boi e vinha puxando até a água. O burro, nadando, acabava rebocando o bicho que, assustado, queria sair para o lado, mas o burro soprava, não queria água nas narinas, aguentava o tranco e lá iam eles, até chegar na terra mais alta. E isto ia continuar até de noite, se não fosse o Seu Joca aparecer no alto do barranco, batendo o chicotinho na bota e fazendo com o braço: Vem!
O Jalo esfriou, perdeu a graça. O Zé Campero falava: “Ah lá, Jalo, o chefe tá chamando!” E dava risada, enquanto puxava mais um boizão. Dava risada a turma toda: O Zé Campero, o Renor, o Nilo, o Arlindo, cada um na sua montaria, espadanando água e rindo do aperto do Jalo.
Caramba, e tinham sido eles mesmos que puseram fogo no Jalo: “Vamo puxá boi na varge, vem judá a gente, ocê já tá grandinho, já é quase um home”. E agora ficavam tirando sarro só porque o Jalo ficou branco quando viu o Seu Joca no alto do barranco.
Bem que o Seu Joca tinha negado o pedido de manhã cedo: “Não vai não, que aquilo não é serviço procê. Pegue o burro, arreie e vai pra tuia, lá tem outras coisa procê fazê”. E o Seu Joca era o chefe, só abaixo do Seu Fonseca, que só era abaixo do Doutor Cícero, dono de Coruputuba.
Mas o diabo tenta os moleques que não têm juízo. Depois que tomou café com leite e pão com manteiga – e isto na cozinha do Seu Joca, junto com o Edésio, que era a mesma coisa que um irmão, com a Dona servindo o café para ele que nem que fosse um filho – pois não é que o Jalo resolveu desarrear o burro que já estava na carroça, montou em pelo e pocotó pocotó, lá foi ele para a vargem!
Ê festa! O Paraíba tinha virado um Mar! Os campeiros já estavam puxando boi fazia tempo quando o Jalo entrou com burro e tudo, espirrando água, feliz com a recepção: “Aí, Jalo, num é que ocê veio memo!”.
Agora tudo mudou de repente. Jalo foi levando o burro, puxando o boi, até o seco. Soltou o boi e veio que nem um cachorrinho de rabo baixo: “Senhor, Seu Joca?” E o Seu Joca só disse: “Vai pra casa. Ocê não trabaia mais hoje. De tarde vô falá com seu pai. Se amanhã cedo ocê não tivé com as costa cortada de rêio, eu que vô surrá ocê”.
Foi pra casa. O Pai estava lá: “Ué, cabô o serviço já?” E o Jalo, fingido: “Cabô mais cedo, Pai”. E começou a ajudar o Pai a tratar dos passarinhos. “Ué, que que deu nocê, judano eu?” E ficaram os dois limpando as gaiolas, soprando o alpiste, trocando a água e de repente o barulhinho da charrete do Seu Joca.
Jalo vazou para o fundo do quintal, ficou vendo o Pai conversando com o Seu Joca no portão. Depois, o Seu Joca subiu na charrete e foi embora e o Pai foi falar com a Mãe e depois veio vindo para o fundo do quintal com o relho dobrado na mão. A Mãe veio atrás com a vara de amora.
Jalo abaixou no chão, escondido nos pés de mandioca, ficou vendo as botas do Pai e os chinelos da Mãe, de um lado para o outro. Ele se esgueirava, quietinho, agachado. Pai e Mãe resmungando que já estava escurecendo. Desistiram. O Pai falou: “Vamo entrá, dexa ele, vai escurecê, daqui a pôco aparece o Home de Terno Branco, ele vai vê só”.
O Home de Terno Branco era a pior sombração da roça.
Pai e Mãe entraram, fecharam a porta. Escureceu. Encheu de vagalume, coruja piou, o céu entupiu de estrela e o Jalo, morrendo de medo, teve que se entregar. Apanhou, apanhou muito, de relho e de vara. Gemeu, mas não reclamou, sabia que estava errado. Terminada a surra, a Mãe veio com a vasilha de salmoura, aquilo ardeu mais do que as relhadas, mas era para não arruinar.
No dia seguinte cedinho já estava na frente da casa do Seu Joca. O Edésio chamou para tomar café com leite e pão com manteiga. Em casa era só café preto, às vezes com farinha de milho, no geral só o café mesmo. Jalo entrou, que nem um cachorrinho alegre, empurrando o Edésio, que empurrava ele, igual todo dia.
Seu Joca entrou na cozinha, esperou que ele acabasse o café. Então chegou por trás e falou: “Dexa eu vê”. Levantou a blusa e a camisa do Jalo. As marcas do relho estavam vermelhas e inchadas, nas costas e nos ombros. Seu Joca falou: “Tá bão”. E baixou de novo a camisa rala e a blusinha velha do Jalo.
Depois Seu Joca falou: “Ocê agora tá com reiva de mim. Mais quano ocê crescê, vai lembrá que eu fiz isso foi pra cuidá docê. Não foi de reiva. E vamo trabaiá que tem muita coisa pra fazê!”.
Até agora, que o Jalo já está velho, os olhos dele enchem de água quando ele lembra.

  *   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes, conforme narração feita por Cezário Barbosa, o Jalo.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Os cachorros de Coruputuba - II

O CÃO HERÓI

A Casa Amarela ficava no Segundo Tanque
...........................................................

O Valdemar, filho do Seu Enéas (irmão do Seu Alcindo), foi pescar no Primeiro Tanque.
Coruputuba tinha uma série de represas em degrau. Era a água do Córrego Coruputuba (que corre entre o Rio Ipiranga e o Ribeirão Capituba). A água foi represada em três represas em degrau, sendo que uma despejava na outra, num engenhoso sistema de comportas. Tudo obra do planejador engenheiro Alberto Simi, que tinha sido prefeito de Pindamonhangaba - vai vendo o gabarito da equipe do Cícero Prado...
O Primeiro Tanque ficava bem perto da linha da EFCB. Era a represa mais selvagem, cercada de mato, capim alto entrando na beirada da água.  O Segundo Tanque era separado do Primeiro por uma barragem, sobre a qual passava uma estradinha. Fazia um barulhão a água caindo do Primeiro para o Segundo numa profunda caixa de controle feita de concreto, com enormes comandos parecendo o timão de um navio.
O Segundo Tanque foi o mais famoso. Nele foi que funcionou, anos depois, o Clube Náutico. Às suas margens, já no final dos anos sessenta, foi erguida a Casa Amarela.
Nossa, mas acho que eu fugi da história! Estava falando do cachorro herói!
O Valdemar foi pescar no Primeiro Tanque. Levou o cachorro. Encostou a bicicleta, sentou na beira da água, começou a preparar os anzóis... e o cachorro deu o alarme. No meio do capim, pertinho do Valdemar, um enorme jacarezão. O cachorro avançou, ficou entre o monstro e o dono. O jacaré deu um só golpe, abocanhou o cachorro e entrou na água, mergulhou, nunca mais o cachorro do Valdemar foi visto.
Valdemar voltou para casa e contou a história do Cachorro Herói.
Sou testemunha de que de fato havia jacaré nos tanques. Eu tinha quinze anos quando mataram um enorme jacaré no Segundo Tanque (isto antes de existir o Náutico). O jacaré era tão grande que, quando foi colocado na caçamba da camionete, foi preciso dobrar o rabo paralelo ao corpo, para caber, eu vi. Esta cena foi debaixo da paineira da Vila Jacarandá, numa tarde de sábado de sol.
Hoje em dia, o Segundo Tanque está vazio e aparecem, no meio do capim, centenas de tocos de árvore. Imagina, lá atrás, quando fizeram as represas (e eu elogiando o Alberto Simi) não tiraram os tocos de árvore antes de inundar. Por isto, eu acho, que morria tanta gente quando ia mergulhar. Batia a cabeça no toco.
*    *    *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
A foto também (obtida com minha famosa Bieka em 1968)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Os cachorros de Coruputuba - I


Eram tantos! Tamanhos, cores, temperamentos... Cada um com sua história, com seus donos, em suas casas ou nas ruas, em volta do açougue, da padaria, do armazém... Rodeando a Pensão da Dona Eleuzina e do Seu Eurico. Entrando na Escola e acompanhando a fila dos alunos...
Nas noites silenciosas de Coruputuba, na minha caminha no quarto da frente, eu escutava os latidos distantes. Forçava o ouvido e escutava ainda mais longe e ficava quieto analisando: É na Vila Tupi... é na Campineira... Será na Vila Tanque? Nossa, este agora está latindo tão longe! Será que é na Vila Esperança?
Seus ossos já viraram pó na terra dos quintais e hoje não é mais possível localizar nem as casas! nem os quintais! quanto mais as covas rasas que um dia foram abertas entre lágrimas, na despedida daqueles amigos fiéis.
Façamos a nossa homenagem a eles, meus amigos!
Abro com a crônica sobre meus amiguinhos Doguinho e Neguinho.

DOGUINHO E NEGUINHO
Doguinho não seria Doguinho, o certo seria Doguinha, pois era uma cadela vira-lata, amarela, pelo curto, orelhas espetadas como um cão policial. Uma cachorra muito inteligente, atenta, amorosa. Logo na primeira cria (quem seria o pai da ninhada? Um dos vira-latas que rodeavam a nossa casa...), logo na primeira cria ela teve nove cachorrinhos, um de cada cor, um de cada jeito. Mas o comovente mesmo, que chamou a atenção de todos os vizinhos, foi ela ter adotado uma gatinha recém-nascida.
É que, no segundo dia após o parto, nós ganhamos uma gatinha que ainda estava com os olhinhos fechados, não sei se a mãe dela tinha morrido, não lembro. Colocamos a gatinha entre os cachorrinhos, primeiro esfregando-a no focinho de cada um dos irmãozinhos adotivos. Doguinho cheirou, lambeu e aceitou. A gatinha mamou, mamou, e, a partir daí, cresceu entre os cãezinhos, dormia com eles, mais tarde corria atrás deles e rolavam em lutas simuladas...
Quando a gente saía para levar as cabras para pastar, Doguinho ia junto. Eu a ensinei a pegar a na ponta da corda da Cabrita Marrom e lá ia ela, puxando a cabrita que ia correndo atrás dela, tentando chifrá-la.
Num carnaval, eu e o Bosco vestimos nela algumas roupinhas velhas, camisa e calça, e ela fez o maior sucesso no bairro quando saímos com ela para ir buscar água no largo. Outra vez, era tempo de amoras maduras no fundo do quintal. Coitada do Doguinho, zoamos com ela. Fomos espremendo no seu pêlo amarelo as amoras roxas, cobrimos o corpo todo, até a cabeça e as orelhas, e o rabo, de pintas escuras. Ficou uma autêntica oncinha. E saímos com ela, para alegria do bairro.
Da primeira cria da Doguinho nós ficamos, inicialmente, com dois cachorrinhos. Um era o maior, o mais alto, cinza com pintas pretas. Chamou-se Pintado. Queríamos que ele fosse bravo como um cão de guarda e o deixávamos preso na corrente no fundo do quintal. O que conseguimos foi que ele ficasse nervoso, latindo até ficar rouco, coitado. Desculpem os leitores a nossa ignorância de crianças que nunca tinham tido cachorro. Aliás, não é bem assim, outros cachorros tinham passado pela nossa casa, mas isto é outra história.
O Pintado acabamos dando para um carroceiro da Vila São Benedito, que o repassou para uma família de japoneses que moravam na Água Preta. Tempos depois soubemos que morreu atropelado.
O outro cãozinho que ficou da primeira cria foi o Neguinho, que era branco, quer dizer, amarelo claro, mais claro que a Doguinho. E mais peludo que ela. A cauda parecia a de uma raposa, com os pelos ao vento quando corria. E não tinha as orelhas espetadas da mãe. Suas orelhas eram caídas, infelizmente não caídas inteiras como as do Pintado, que parecia um perdigueiro. As orelhas do Neguinho ficavam em pé até a metade e nesse ponto caíam para a frente, como tantos cãezinhos “sem raça definida”. E o Neguinho cresceu menos que a Doguinho, ficou baixo e encorpado, um amor de bondade e companheirismo.
Por que Neguinho? Nada a ver com a cor. Mas por causa do sentido carinhoso da palavra. Meu pai chamava mamãe de “Nega”, “Minha Nega”... E mamãe era branquinha, cor-de-rosa até.
Mas foi essa dupla, Doguinho e Neguinho, que acompanhou as nossas aventuras, as nossas estripulias, os nossos longos passeios debaixo dos eucaliptos, as nossas andanças desde a Figueira até a Volta da Bananeira, a nossa busca por esterco para adubar a horta e as nossas expedições atrás do cheiroso capim-de-angola para as cabras. Foi essa dupla que nos seguia quando íamos até a Vila Campineira comprar um leitãozinho para engordar ou quando íamos levar a cabra para cruzar com o bode do Seu João Barbeiro, lá atrás da Fazenda, onde hoje...
Ah, desculpem de novo, mas não vou falar do que virou hoje aquele caminho atrás da Fazenda. Deixem-me com as lembranças daqueles latidos alegres da minha dupla de cachorros, correndo na nossa frente para chegar depressa na Represa... Doguinho e Neguinho ficavam esperando dentro da água, esperando que a gente jogasse com toda a força um pedaço de pau para eles irem buscar no meio do lago, muita vez voltando os dois segurando cada um uma ponta do pau, resfolegando como uma locomotiva cansada.
Foram nossos amigos verdadeiros. Entendam: como se fossem nossos irmãos, eu entendo agora.
Doguinho teve umas quatro crias e morreu envenenada com formicida por um vizinho. Neguinho ficou velhinho e acompanhou a mudança para Pinda quando o Paraíso Terrestre estava fechando. Morreu cego, coitado.
*    *    *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Comida e Tomé

A.E. Industrial de Coruputuba, 1958. Em pé: José Mexas (diretor), Comida, Nelsinho, Mingote, Armando, Alcides Felício, Nê e Tico. Agachados: Tatu, Barbosinha, Irineu Caússo, Milton, Gato, Ríbio, Valter e Darci. E o farmacêutico Seu Augusto (diretor), 
Na arquibancada, de óculos escuros (como sempre), o Dr. Cícero Prado!
*    *    *

O Seu Zé Mexas passou por trás do gol andando depressa e falando: Vamos descer que é perigoso.
Nem precisava, porque eu, o Bosco, o Araújo, o Ângelo, já estava todo mundo descendo alvoroçado, a gente sabia que lá vinha bomba. Era assim quando o Tomé ia bater falta.
Dava uma raiva do Tomé. Porque do São Paulo mesmo a gente não tinha medo. Respeitava alguns nomes, como o do goleiro Mazinho, muito bom. Mas não tinha medo do São Paulo. Era difícil a Industrial perder para o tricolor de Pinda. Podia perder para a Ferroviária, às vezes (às vezes!) para o Corinthians do Alto do Cardoso. Anos depois, até perigava diante do Aisa. Mas para o São Paulo não perdia não.
Está certo que o São Paulo não era nenhum freguês de caderneta, que nem o Haras, o Unidos, o Feital, o São Pedro da Sapucaia... Nem tanto. Mas não dava medo para a torcida de Coruputuba. A não ser o bendito do Tomé.
Um negro magro, mas magro! Umas pernas finas e muito compridas, ele se impunha no seu espaço de campo, com classe e presença. Mas dava medo mesmo é quando ia bater falta, a bola vinha chiando no ar com tanta velocidade que não dava tempo de ver nada. Vinha chiando e fazendo curva para a direita, um efeito que obrigava o goleiro a armar a barreira uns dois metros puxada para fora da direção da trave.
Se ele errava o chute, a bola explodia na tábua da cerca, balançava tudo. Ainda mata uma criança, o pessoal falava.
Se pegasse na barreira, ficava um caído no gramado, gemendo.
Então aconteceu que o Mingote precisou parar um ataque do São Paulo: deu um belíssimo carrinho por trás, derrubando o ponta esquerda que vinha com fome de gol. Falta! O Tomé que vai bater! E o Comida desafiou o Tomé. O juiz perguntou e ele falou: Sem barreira! Sai, sai todo mundo, gritava o Nelson Comida, gesticulando e esbravejando com o Tico, o Felício, o Armando...
Atrás do gol, nós deliramos: Nossa Senhora, o Comida tá humilhando o Tomé. O Araújo ficou preocupado: Ah meu Deus, não sei não...
O Tomé ajeitou a bola, uns cinco metros fora da meia lua. Ajeitava a bola olhando para o Comida. Não tinha ninguém entre os dois, os beques ficavam para os lados, se esbarrando com os atacantes do tricolor.
Pum! Pum! Já foi a cobrança e já foi a defesa! Sem barreira para atrapalhar, o Tomé pegou de três dedos com toda violência, meio do lado de fora da bola, que veio chiando na meia altura. O Comida voou e colocou para escanteio com a mão direita. A torcida explodiu em gritos e urros, o povo da arquibancada sapateava nas tábuas, parecia um trovão que não acabava nunca. A gente berrava um monte de palavrão, de tão contente.
Nelson Comida: nosso herói! Enfrentou o Tomé sem barreira!
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Por cima da cidade


Marreca d’água passou em bando sobre a cidade, meio flutuando parece, parece que meio voando de lado. Umas doze marrequinhas, irerê. Era de tarde, quase escurecendo, céu ainda claro. Piavam: I-re-rê! I-re-rê! E voltaram, em curva, como quem vai para o lado do Bosque, do Paraíba, da Serra...

Marreca d’água me contou: Seca está durando muito!

Duas semanas depois, começou a chover. Choveu manso, que que é isso, imagina, outubro sem chuva de plantar milho! Depois, de repente, choveu bastante mesmo, choveu pesado, com céu escuro.

Daí saiu içá e já era metade de novembro! Seca estava durando muito. Içá e sabitu já estavam prontos para voar e casar, mas cadê chuva? Sem chuva não tem jeito, o chão estava muito duro, como que a içá ia cavoucar seu ninho? Ela precisa entrar no chão uns sete ou oito centímetros para botar os primeiros ovinhos.

Bom, agora, com a chuva, içá voou. Um dia só, um domingo só.  Mas passarinho ficou contente, comida boa. Festa para bem-te-vi, suiriri... até tesoureiro apareceu, balançando no fio do poste.

Juriti veio para a cidade, começou a disputar comidinhas com os pombos da cidade. Mas gavião carijó vem atrás, fica sentado lá no alto das pinhas do Museu, olhando, olhando, de repente cai num voo flechado, pega a juriti. E os pombos se espalham, assustados igual em tarde de foguetório.

Quem parou de passar por cima da cidade foi maitaca. Também, setembro acabou, já formaram os casaizinhos, não precisa mais passar gritando, batendo as asas verdes.


Agora é esperar dezembro, janeiro, bigodinho cantando nas árvores, debaixo da chuva miúda.

* * * * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Fotos emprestadas de:
olhares.uol.com.br
fotosdocotidiano.blogspot.com

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Metamorfose

Naquele tempo, tudo o que eu sabia
era uma folha verde, ampla como um campo,
e a minha verdade era aquilo, a minha folha
imensa: berço, alimento e casa.

 
Depois, o alimento repugnou-me (tanta gula!)
e recolhi-me contrito, envolto em mim:
a minha verdade foi o silêncio e a paz.


Mas (tudo muda?) o que teci para mim
foi ficando pequeno demais quando
a energia nova inflou minhas artérias:

então, grande e belo, abri de vez minhas asas novas
e não neguei meu corpo para o espaço.



Hoje o vento me ensina ritmos
entre as flores e o azul:
minha verdade agora é o Sol.

*  *  *

Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro “Terra Vegetal” – Reg. Biblioteca Nacional: 133.608

As fotos tomei emprestadas destes blogs:
João Martins 08 - redecurumimsantana.blogspot.com
portalsaofrancisco.com.br
uketag795.blogspot.com
nandalf.blogspot.com

domingo, 13 de novembro de 2011

O fim do Galo Índio


O galão do Seu Luizinho era um legítimo galo Rhodes. Forte, peitudo, todo vermelho, parecia um rei grande, gordo, coberto com um lindo manto de penas brilhantes. As esporas eram longas e bonitas, mas não serviam como arma de guerra, pois eram muito curvas.
Diferente do nosso Galo Índio, que era magrão, comprido, esporas retas e afiadas. Mas a diferença principal: o nosso galo não tinha crista, nem barbela. Assim não ficava exposto a grandes ferimentos. Coitado do galão do Seu Luizinho: tinha uma crista enorme, tão grande que ficava até meio dobrada na ponta, como se fosse cair por cima dos olhos...
As brigas começaram logo que o Galo Índio ficou adulto. Eram brigas à toa, através da cerca de taquara. Nenhum dos dois se feria, apenas ficavam horas se provocando, tentando se bicar. Minha mãe mandava a gente separar, mas eu e o Pedro não queríamos separar não. A gente queria ficar vendo a briga.
E um dia um pensamento muito mau tomou conta das nossas cabeças. Nós pegamos o Galo Índio e o jogamos por cima da cerca, no quintal do Seu Luizinho. Nossa Senhora! O galão vermelho bateu as asas, deu uma ciscada no chão, fingiu que estava comendo algum grãozinho, veio vindo... E o nosso Galo Índio enfrentou. Foi uma briga feia.
Quando vimos que o galo do Seu Luizinho estava ficando machucado nós corremos para a rua, fomos até o portão do vizinho e, muito fingidos, chamamos: Seu Luiz, Seu Luiz, deixa a gente entrar pra pegar o nosso galo que pulou aí no seu quintal!
Só que voltamos a cometer o mesmo pecado mais umas duas ou três vezes. O Galo Índio foi ficando cada vez mais valente. E o galão do Seu Luiz cada vez mais machucado e assustado, até que ele afinou de uma vez e não chegava mais perto da cerca, nem cantava mais.
Então o Seu Luiz deu um fim nele e comprou um galo índio muito feroz.
Eu fiquei com muito medo e falei: Pedro, não vamos mais jogar o galo lá, que é capaz de ele se machucar.
Nós não jogamos mais o galo na casa do vizinho. Mas um dia eles começaram a brigar pela cerca. E nem eu nem o Pedro estávamos em casa para apartar. A gente tinha saído para ir comprar um porquinho na Vila Campineira.
Quando chegamos, a tragédia já estava feita. O Galo Índio, o nosso querido Galo Índio, estava dependurado na cerca, sem poder se defender. Ele tinha enfiado a espora no arame da tela, durante a briga. Agora, sem conseguir sair de lá, ficava entregue às bicadas do inimigo. Estava sangrando muito.
Recolhemos o nosso amigo ferido. A Vó ajudou a gente, demos um banho de água morna, passamos vinagre nos ferimentos. Mas ele estava perdido. As armas do inimigo tinham furado o seu papo. A Mãe falou que tinha que matar. O Pedro chorou, falou que podia matar, mas ele não ia comer nem um pedacinho. Eu também falei isso.
Realmente, naquele domingo, junto com a macarronada, teve galo ensopado. Todo mundo comeu. Mas eu e o Pedro almoçamos somente o macarrão.
A história acaba aqui...
*   *   *
Não, não acaba não. O Pedro sempre pensou que a história acabou assim. Mas não foi desse jeito. Eu tenho que confessar. Foi o seguinte:
Bem de tarde, depois do futebol, eu passei pela cozinha. A panela estava no canto do fogão de lenha. Eu levantei a tampa: que cheiro gostoso! Que fome! Que apetite!
Eu acabei comendo uma sobrecoxa do nosso querido amigo.
* * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Em “Minha vida de menino em Coruputuba”

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Galo Índio


O nosso Galo Índio era filho da Mãe-do-Galo.
A Mãe-do-Galo era a galinha mais brava do quintal. Só ela que podia dormir no poleiro mais alto do galinheiro. Dali de cima ela bicava com força qualquer galinha ou frango que quisesse sair dos poleiros mais baixos. Ela é que mandava. Bicava até o Galo Índio, e ele não fazia nada.
O Galo Índio era muito bonito. Era vermelho e preto. O Pedro falava que ele era do Flamengo. As penas da cauda eram muito compridas, faziam uma curva bem redonda. Quando ele ficou adulto, as esporas ficaram grandes e perigosas.
Ele não tinha crista e eu achava isso muito bom. O Galo Velho, que tinha sido o rei do quintal antes dele, tinha cristas vermelhas enormes e por isso ficava muito machucado nas brigas. Mas o Galo Índio não. Sem crista ele podia brigar quase sem se machucar.
Eu entendia a fala do Galo Índio. Minhas irmãs falavam que isso era coisa de doido. Mas eu entendia sim. Pela voz dele, sem olhar, eu sabia o que ele estava querendo dizer.
Ele tinha uma fala para chamar a galinhada quando encontrava minhoca ou cupim. Tinha outra fala para avisar que a gente já tinha colocado água na vasilha. E tinha uma voz especial para avisar os pintinhos do perigo, quando passava algum gavião.
Mas saudade de verdade eu tenho de escutar o Galo Índio nas madrugadas frias de lua cheia. Primeiro ele batia as asas três, quatro vezes. Depois cantava comprido, comprido...
Encolhido de frio na minha cama, eu escutava depois o galo branco do Seu Luiz respondendo. Depois o galo amarelo do Seu Moacir... depois, lá longe, lá longe, o galão preto da Dona Antônia. Depois... depois eu dormia de novo.
E só acordava quando o sol nascia e a cabra começava a berrar.
*   *   *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Veja também O FIM DO GALO ÍNDIO em: 

https://paulotarcizio.blogspot.com.br/2011/11/o-fim-do-galo-indio.html

domingo, 30 de outubro de 2011

Abrigo

Meu nome é paz
Agora que me ergo em espuma
Acompanhando a extensão da praia
E refluo em seguida para me atirar de novo
Desenhando na subida o que apago na volta.

Meu nome é luz
Agora que abro meus braços leves dentro
Das nuvens que flutuam transparentes
Sobre a mata que protege todos os meus morros.

 
Meu nome é perfeição
Agora que chovo sobre toda a enseada
E a escureço da Cabeçuda até a Almada
E me filtro na direção dos riozinhos surpreendidos.

 
Meu nome é eternidade
Agora que pulso na persistência dos passarinhos
E descrevo a história da vida humana
Na curva descendente do voo da gaivota.

*  *  *

Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro “Terra Vegetal” – Reg. Biblioteca Nacional: 133.608

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Paraíba



Em 1960 eu estudava neste prédio onde agora trabalho, o Palacete Visconde da Palmeira, ou seja: o Museu. Estava cursando a primeira série do ginásio. Meu irmão Zaga estava na segunda. Tinha vez que a gente chegava de Coruputuba e ficava sabendo que não ia ter aula, ou a aula ia começar mais tarde.

Então a gente descia para o Bosque, que era cercado por um muro todo arrebentado. Entre o Bosque e o Paraíba havia uma rua. Quer dizer, era uma estradinha. E o gostoso mesmo era sentar no barranco e ficar olhando o rio, vendo as coisas que aconteciam.

Passava uma barcaça carregada de areia, comandada por dois camaradas munidos de longas varas que cutucavam o fundo do rio. Nada de remo. A gente via que os homens estavam fazendo um baita esforço.

Um pescador numa canoinha, do lado de cá. De repente, dava na telha dele de atravessar o rio, ir pescar lá na “ilha”. Então ele ia subindo o rio, beirando o capim, aproveitando que na margem a correnteza corre para cima. Quando já tinha se distanciado bastante, aí sim ele punha a embarcação no meio do rio. Ia atravessando enviesado e chegava do outro lado num ponto muito abaixo de onde tinha começado.

E recomeçava a pescar.

Alguns bois vinham sendo tocados por um cavaleiro, com destino ao matadouro, que ficava onde hoje é o DOV. Um dos bois se espantou e pulou no Paraíba. Saiu nadando lindamente, rio abaixo, quase todo afundado. Só apareciam os chifres, os olhos e as narinas muito abertas.

Aí a gente levantava e subia a ladeira, estava na hora de começar a aula, ou de irmos embora para casa no ônibus do Seu Ciro Valentini.

Mas até mesmo nos dias de aula normal eu olhava para o rio, lá de cima, pela janela da biblioteca. Estavam retificando o traçado, grandes máquinas trabalhavam o dia todo, escavando, escavando. Tiraram as curvas, o rio ficou mais rápido, diminuíram as cheias. Mais tarde, nos anos setenta, com a construção das barragens de Santa Branca, Paraibuna e Igaratá, daí que desapareceram mesmo as grandes cheias.
Da retificação sobraram uns braços mortos do rio, em forma de grandes meias-luas. É o Paraíba-Velho, dizíamos. Trechos parados de um rio outrora cheio de meandros. É onde dormem as garças.

* * * * *
Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Fotos:
1- Arquivo Histórico Dr. Waldomiro Benedito de Abreu - Pindamonhangaba - SP
2- Google Earth

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Tarde na serra


Debaixo deste céu azul, em outras partes,
há gente e há pensamentos
e há sonhos sob essas nuvens brancas.

Sentimos no soprar desta brisa
soprarem os ventos de outros climas,
falando com outras árvores,
roçando outras relvas,
despetalando outras flores.

Iluminados por este sol
há, além dos horizontes, outros povos e mais cidades

e mais gente sonhando sob as nuvens brancas.

Há, descendo de outras serras, outros regatos
e mais pedras rolando em outros rios
e mais melancolias, e mais crepúsculos.

Há por toda a Terra nesta tarde
as vozes e os sonhos de todas as pessoas.

*  *  *

Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro “Terra Vegetal” – Reg. Biblioteca Nacional: 133.608
Fotos do autor (sendo que a segunda foto eu obtive com a minha já famosa Bieka em 1967, no Ribeirão das Oliveiras)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O irmão do filho pródigo

Antipático o irmão do Filho Pródigo!
Não nos conta a história se ele errou
Ao menos uma vez na vida.
Mas todas suas boas ações
Ele as tinha anotadas.

E tinha, no julgar, aquela dureza própria
De quem nunca errou, não tendo oportunidade
De se humanizar no seu erro.

Inconcebível, para ele,
Sair ao encontro do irmão errado
Para abraçá-lo
Pois o abraço supõe compreensão.

Garanto que o Filho Pródigo seria
Muito compreensivo, humano,
De perdão fácil, pois descobriu o sabor
Do erro e do perdão.


*        *        *
Poema de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes
Livro "Terra Vegetal" - Ed. Scortecci - Reg. B.N. 133.608