O LAGO DE CORUPUTUBA

A foto acima obtive em 1967 com a minha antiga Bieka. É o lago da Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Caminhando com o Pedro

 

Pedro com o Carlos e os alunos das Oliveiras, 1969


Já tínhamos feito o trabalho de carpintaria de serrar e martelar, construindo um bom chiqueiro no lado mais ensolarado do quintal. Então, na manhã de um sábado, fui com o Pedro, levando sacos de estopa, até a Vila Campineira, comprar uns leitões na casa do Rubens e do Guido Magalhães. Esses meninos tinham sido meus colegas no primário e ficaram alegres com nossa visita. Negociamos com o pai deles e trouxemos dois porquinhos e uma porquinha. Voltamos contentes, pela Vila Bela, para soltar os bichinhos na casa nova deles, que ainda tinha cheiro de serragem.

 Ainda naquela semana, fomos nós dois, mais o Bosco, até a Volta da Bananeira, que a gente ainda não conhecia, fomos levando a cabrita marrom, para deixar lá, na casa do dono do bode grande, para ela pegar cria. Demoramos para encontrar, erramos o caminho, tivemos que voltar um trecho e perguntar na Vila Esperança. No fim, deu certo. Chegamos de volta em casa já de noitinha.

Uma viagem que sempre eu fazia com o Pedro era para Pinda, de ônibus, para comprar farelo de arroz na máquina do Andrade. Tempo em que a agência da Pássaro Marron ficava na Expedicionários, em frente ao Brasília Lanches e à Banca do Seu Romeu. Na máquina de arroz, geralmente, não tinha farelo pronto, ficávamos vendo a máquina agitando o arroz integral, tirando a película bege, que virava farelo - e o arroz saía branquinho do outro lado.

Anos mais tarde, todos os irmãos já estavam moços, fizemos passeios inesquecíveis e cansativos. Julho de 1966, um sábado, jogos da Copa do Mundo, fomos para Tremembé. Uma aventura, pequena, mas uma aventura. Saímos de Coruputuba. Pegamos o ônibus azul em frente ao Pujol, levando lanches e refrigerantes. O Carlos, o Pedro, o Zaga, o Bosco e eu. Conhecemos a Basílica do Bom Jesus, a praça de árvores frondosas, fomos lanchar perto da fonte, tomamos a água milagrosa. Carlos levou o radinho de pilha. Acompanhamos o jogo em que Portugal ganhou da Coreia do Norte por 5 a 3. 

Voltamos a fazer um passeio magnífico foi em 1967. Para Campos do Jordão. Aí já estávamos morando em Pinda. Eu fui o cicerone, conhecia alguma coisa da cidade. Já sabia que os preços da alimentação ali eram muito altos. Por isso, levamos bastante comida. Frango assado, farofa boa, pães, latas de sardinha...

Subimos para Campos no bondinho das seis horas. Muita neblina. Só clareou tudo na estação de Lefévre, quando passamos para cima das nuvens. Céu azul lá em cima e um colchão de nuvens brancas debaixo da gente.

Em Campos, íamos comer debaixo dos pinheiros. Mas choveu e só o Carlos que tinha guarda-chuva. Fomos todos para um restaurante e pedimos coca-cola. Pedimos emprestados alguns pratos. E fomos desembrulhando os frangos, as sardinhas, a farofa e outros itens. 

Depois de bem alimentados, subimos o Morro do Elefante. Tempos e tempos nós ficamos olhando a  cidadinha lá embaixo. Parecia uma cidadinha de presépio. Carrinhos. Pessoinhas andando. Arvorezinhas... No topo do Morro do Elefante tinha um Santo Cruzeiro. Só isto, naquele tempo. 

Os anos se passaram muito depressa e nosso trabalho de professores nos levou por caminhadas diferentes. Enquanto eu andava pelo Porto Novo em Caraguatatuba, e pelo Rio Abaixo em Jacareí, o Pedro fez caminhadas pela Serra da Mantiqueira, em diferentes escolas. Andou quilômetros na sombra escura das araucárias, no Parque Estadual, lecionando numa escolinha muito longe de qualquer povoação. A cama de armar ficava dobrada atrás da porta durante as aulas. As crianças conversando, amigáveis, ele explicando, ditando lições, os alunos perguntando. Fora das paredes de tábua, o ruído da chuva nos pinheiros. Então acabava a aula, os alunos davam tchau, iam embora, ele ficava sozinho. No silêncio, só o barulho da chuva. Ia escurecendo, na mata escurece logo, hora de cozinhar o arroz na panelinha, no fogareiro. A medida de arroz era um potinho vazio de danone. Tudo certinho, a lanterna presa debaixo do braço esquerdo, a solidão por companhia. A noite quieta. O próximo som que ele ia escutar seria de manhã, quando as crianças chegassem com suas conversas e perguntas e risadas. Até lá, o silêncio, e as gotas da chuva. 



Mais um pacote grande de tempo rolou, e nós dois pudemos caminhar juntos na Serra do Mar, no meio da Mata Atlântica, entre Ubatuba e São Luiz. Tinha chovido na véspera e tudo agora estava azul e ensolarado, a mata brilhava. Na trilha, as botas não faziam barulho, tudo encharcado. De repente, uma arvorezinha se abalou e choveu debaixo dela. Era um esquilo, que pulou mudando de galho. Nós dois nos agachamos, paralisados. O bichinho também parou, os bigodes se agitando, as mãozinhas no peito, o nariz se movendo. Instante - e pulou num tronco caído, correu ao longo dele, muito rápido, em dois pulos trepou na outra árvore, sumiu-se na folhagem. O Pedro falou: Nossa, Paulo. 

Depois os anos se passaram, todos de uma vez só, e não deu tempo de fazermos a caminhada que uma vez começamos a combinar e nem terminamos de combinar direito. Que era de irmos a pé até Aparecida, conversando no caminho, rezando o terço, lanchando na beira da estrada, conversando de novo, comentando as muitas andanças que já tínhamos feito pelos caminhos deste mundo de Deus. Não deu tempo, Pedro, meu irmão. Mas caminhamos bastante.

Texto e fotos de Paulo Tarcizio


domingo, 7 de janeiro de 2024

UM MENINO SOB AS ÁRVORES


Já estava ficando escandaloso aquele negócio de toda quinzena sumir um porco da Escola Agrícola.  Era mais ou menos agendado: semana sim, semana não, um belo dia de manhãzinha havia um porco de menos no chiqueiro. Depois de algum tempo os ladrões ficaram mais calmos e passaram a matar, limpar e esquartejar o bicho na escola mesmo, deixando para trás apenas a poça de sangue e algum miúdo inaproveitável.

Aquilo deixava tenso o pessoal da direção. A gente começava a suspeitar de todo mundo. Parecia, aos nossos olhos desconfiados, que não eram todos que estavam chateados... A direção tinha que fazer B.O. na polícia. E fazia, mas ficava só nisso. O B.O. servia só para instruir o processo de pedir baixa no inventário. Eu ouvia coisas assim: Fazer o quê, Não tem jeito, A escola está muito dentro da cidade... Ficava injuriado com aquele conformismo. Houve colegas que me disseram: Paulo, não esquenta muito a cabeça com isto, não. Você já passou na primeira fase do concurso para diretor, logo vai embora, não entra nessa encrenca, do mesmo jeito que tem gente boa, tem gente que não presta. E acrescentavam: Aqui na Agrícola sempre foi assim, sempre vai ser.

Isto que me diziam não adiantava, continuei achando que eu ia resolver o caso. Responsável pelo noturno, comecei a fazer uma grande ronda pela escola, antes de ir para casa às vinte e três horas. Com o farol alto, ia fazendo o carro percorrer todos os caminhos possíveis: atrás da lavanderia e da cozinha, em volta do campo de futebol, entre o galinheiro e os chiqueiros... Então pegava a estrada da horta, descia o morro em direção à silvicultura, pomar, ia até os estábulos, voltava por dentro do pasto, pegava a alameda dos ipês, ia pelo meio deles até ver o vulto encostado numa árvore... Opa, o que é aquilo?

Encostado na árvore, um vulto embrulhado num cobertor. Ia se levantando, saindo. Encostei o carro, abri a janela, reconheci: Toninho, que isso? O que você está fazendo aqui? Você está bem?

Estava bem demais. Quando entrou no carro, precisei apoiá-lo e vi que o cobertor estava gelado... Também, era junho... Ele destampou a falar, falava e me explicava: estava conversando com as árvores. Incrível como elas respondem. É uma coisa maravilhosa o jeito que elas conversam com a gente, nossa! As coisas que elas falam! Não dá para contar para todo mundo, tem gente que não entende, o senhor eu sei, é diretor, coisa e tal, mas o senhor é pessoa legal, o senhor entende: eu estava aqui, olhando as estrelas, está frio, o céu cheiinho de estrelas e eu estava aqui escutando o que as árvores estão falando, falando comigo... O senhor também gosta de andar debaixo das árvores, que eu já vi o senhor andando lá, olhando, o senhor também fala com elas.

Na diretoria o café da garrafa ainda estava meio quente, um restinho, ele tomou, sentou-se, continuou falando, excitado, emocionado... Eu ouvia, olhando para ele, pensando nas desconfianças dos inspetores, os armários dos alunos sempre vasculhados: vai que um deles guarda qualquer porcaria...

Toninho diminuiu o ritmo, cansado, talvez o efeito das árvores estivesse passando... Pediu para usar o banheiro. Primeira vez que um aluno usou o banheiro da diretoria. Ouvi que se lavava, longamente. Saiu renovado, agora já meio constrangido, envergonhado – e certamente um pouco temeroso. Olhou para mim: e eu era o diretor. Pediu desculpas... Não falou mais de estrelas nem de árvores. Foi para o dormitório.

A mãe veio buscá-lo poucos dias depois, ele ia se transferir para uma escola da sua cidade, a família achou que não estava dando certo esse negócio de estudar longe, morar longe, ficar um tempão sem ver o seu pessoal...  

Continuei pensando muito nele toda vez que passava na alameda dos ipês. Continuo pensando nele, agora que eu passo por ruas escuras e vejo meninos no sereno... Mas estes meninos parece que não querem conversar sobre árvores, não querem falar de estrelas.

O que eu pretendia com os faróis iluminando os caminhos da Escola Agrícola? Procurava culpados, mas encontrei uma pequena vítima. Se encontrasse os culpados pelo furto dos porcos, o que eu iria fazer? Dar um tiro imaginário: nunca tive arma... Encontrei um dos nossos jovens sob os ipês, o mínimo seria tirá-lo do relento, ouvir suas poesias loucas... E dividir a preocupação com a família, como acabei fazendo.

Quanto aos porcos, continuaram a desaparecer regularmente. Teria alguma noite o ladrão passado sob os olhos do menino das árvores?  Pode ser, nunca soubemos. O que um teria pensado sobre o outro?

Um mês depois, fui embora da Escola Agrícola, ia ser coordenador em Santa Branca, enquanto aguardava as provas da segunda fase do concurso para diretor. O último lugar que visitei antes de sair foi a alameda dos ipês, entre os pastos e a suinocultura. Era julho, de frio e céu azul. A alameda tinha virado um luminoso túnel amarelo, dourado: flores nas árvores, flores descendo no vento, flores cobrindo o chão como um tapete. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Natal das crianças

 



O ano inteiro a gente ficava perguntando um para o outro: O Natal ainda tá longe?

Ansiedade crescia quando entrava dezembro. Exposição na escola, músicas na igreja, coração quase disparava. Aí um respondia: Natal tá chegando... Outro falava: Tá perto da estaçãozinha... Vem vindo...

E uma linda manhã eu acordava com o Zaga falando: Olha debaixo do travesseiro!

Tinha três avelãs debaixo do travesseiro! Isso era um aviso: era o dia vinte e dois de dezembro. Quase Natal. Dia que o Pai começava a fazer o Presépio!

Uma parte do presépio tinha passado o ano inteiro em cima do guarda-roupa, dentro de três caixotes. Outra parte se renovava todos os anos. Papai já tinha ido buscar na fábrica o rolo de papelão azul, para as montanhas, as folhas de papel de seda, para a lapinha, um pouco de serragem para dizer que era areia dos caminhos, anilina em pó e goma arábica.

A mesa da cozinha era levada para o canto da sala, para receber a montanha. Papai desenrolava o papelão azul, olhava para a gente e de repente falava: Não vou mais fazer presépio nenhum, vocês estão fazendo bagunça! E amassava todo o papelão, pisava em cima dele  e a gente dando gargalhada! Sabia que era tudo brincadeira dele. O papelão tinha que ser amassado mesmo, para representar as dobras das pedreiras, as entradas das montanhas...

Nas quinas das dobras, Papai passava goma arábica e soprava o pó da anilina prata, ficava igualzinho pedra. Depois vinha com anilina diluída, azul, verde, preta, vermelha, ia salpicando com o pincel pela montanha inteira. Maravilha! Daí parava e falava: Vamos buscar parasita no calipeiro!

Isso sim, era alegria. O Pedro e o Carlinho corriam buscar bambu comprido, pegaram bambu que estava erguendo o varal, a Vó não gostou: Olha a minha roupa aí! Vai derrubar! Mas não derrubou não.  Ana Clara pegou a cesta e nós fomos todos com o Pai buscar parasita.

Eram umas orquidinhas simplesinhas, dessas que tem aqui na cidade, no fio dos postes mesmo. O Pai cutucava com o bambu, gostava que caía a parasita junto com um pedacinho da casca do eucalipto. E a gente passeando no meio das árvores gigantonas, brincando que era uma selva.

Voltamos com a cesta cheia. Papai foi pondo as parasitas no vão das montanhas, ia ficando igual o mato na serra.

Chegou a hora de abrir os caixotes. Primeiro, ele pegou a Vista e foi desdobrando. Era uma paisagem pintada num papelão bem comprido, o papelão era azul também, tinha a pintura de uma serra azul, com pássaros voando, tudo escuro, para dizer que era noite. A Vista foi estendida por cima da montanha, pegando o tamanho inteiro do presépio, encostando no forro, dobrando no canto da sala.

Mamãe ajudando. Vovó também. Espalharam a serragem cor de areia, imitando uma estrada, puseram pedrinhas na beira da estrada e a serragem tingida de verde nos dois lados da estradinha.

Agora que os caixotes foram abertos, elas iam tirando tesouros secretos lá de dentro. Papai tinha colocado um pedaço meio redondo de vidro, era um lago, na beira da estrada. Elas puseram conchinhas na volta toda do lago. Depois puseram três patinhos de celuloide nadando no vidro, um menininho barrigudo querendo pular na água.

Surgiram de dentro dos caixotes umas arvorezinhas feitas de bucha de tomar banho, tingidas de verde. Foram colocadas também na beira da estrada.

Papai fez uma estradinha que terminava num canto da montanha. Mas colocou um caco de espelho enfiado na montanha, meio disfarçado atrás de uma parasita. A estradinha ficava refletida no espelho, parecia que entrava na montanha e ia embora para bem longe...

Mamãe se encarregou duma parte bem delicada, fazer a lapinha, a gruta onde o Deus Menino nasceu. Papai tinha deixado uma entrada bem no meio da montanha de papelão. Ali mamãe foi colocando folhas de papel de seda meio amassadinho, amarelo, rosa, azul clarinho, parecia que a lapinha estava cheia de nuvens coloridas. Atrás dessas folhas, Papai colocou um soquete com uma lâmpada bem fraquinha.

No chão da gruta colocaram palha tingida de verde. E aí começaram a chegar as figuras mais importantes e foram ocupando seus lugares: o Anjo, Nossa Senhora, o Menino Jesus no berço, São José, o Boi, o Burro, os Pastores, os Carneiros, tudo isto dentro da lapinha, ou chegando perto.

Os Reis Magos com seus camelos foram colocados na estrada. Ainda não era dia da chegada. Primeiro, eles foram colocados bem longinho. Lá perto do lago dos patinhos. Mas cada dia o Pai deixava a gente fazer o camelo andar um pouco, porque no dia seis de janeiro era para os três Reis magos chegarem na lapinha para entregarem os presentes: ouro, incenso e mirra.

O Presépio estava quase completo. Ainda surgiram dos caixotes algumas outras figuras: o Gato com a cara amassada, dois Cães, um Leão, o Tigre. Esses bichos foram espalhados pelas montanhas. E surgiram também umas belezinhas de casas bem pequenas, feitas de cartolina, com teto de papelão, janelas com vidraças de celofane, com chaminezinhas. Também ficaram pelas montanhas...

O presépio estava pronto. Agora, era esperar o Natal.

Dia 24, às seis horas da tarde, quando bateu o sino da igreja, Mamãe mandou que cada um pegasse um pé de sapato e pusesse no banco diante do Presépio.

Feito isso, nós todos fomos chamados para o quintal. Papai ia ler a História Sagrada para a gente, lá debaixo da mangueira.

Papai lendo a História Sagrada: São José e Nossa Senhora peregrinando de Nazaré a Belém, a gente com dó, ninguém podia dar pouso para eles, até que alguém ofereceu para eles passarem a noite numa gruta onde dormiam uns carneiros, boi, burro.

Daí Mamãe pediu licença, precisando ir ao banheiro lá dentro.

Mamãe volta, Papai termina a leitura, a parte que os pastores vão visitar o Menino Jesus com os anjos cantando.

Papai fecha a História Sagrada e Mamãe fala: Vamos ver se o Menino Jesus trouxe alguma coisa para vocês.

Corrida pelo quintal para dentro de casa.

Junto dos sapatinhos: Brinquedinhos, saquinho com avelãs, nozes, ameixas secas, figos, uvas passas...

Cada um mostrando o brinquedo para os outros. Depois, procurando jeito de quebrar as cascas das nozes e das avelãs, nas janelas, nas portas, ou com o martelo do Pai.

Mas não tinha acabado! Carlinho saiu para o jardim e achou um engradado de guaraná caçulinha no canteiro das rosas! Era uma festa em cima da outra! O Natal gostoso!

Depois de todos satisfeitos, todos nos juntamos na frente do Presépio para rezar e cantar. Noite Feliz! A luz da lapinha estava acesa. A gente não via a lâmpada, só via as nuvens de papel de seda clareando tudo. Até os patinhos do lago.

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Texto e foto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Seu Juquinha da Fonte

 



Houve um dia, talvez um domingo, em que a nossa família saiu quase inteirinha numa excursão pelo bairro. Em casa só ficaram a Vovó com a Auxiliadora, que era bebê. A Salete ainda não tinha nascido.

E qual o motivo daquela excursão? Era procurar a fonte. Papai já tinha ouvido falar que ela ficava no mato, na direção da estaçãozinha, pra lá da Vila Esperança.

Água em Coru a gente já tinha, nas torneiras, mas era uma água que precisava passar pelo filtro. Quando chovia forte o Papai aparava no barril a água da bica do telhado e depois passava pelo filtro: pronto, ficava boazinha para beber.

Mas para beber direto sem filtrar tinha que ser água boa da cacimba da Tia Cida ou da cacimba do Seu Eurico. Também podia buscar água limpinha na caixa d’água do Largo, levando os garrafões. Mas agora a gente tinha cismado que a melhor água de beber tinha que ser a água da fonte, que a gente nem sabia onde ficava.

Então saímos todos juntos para procurar a fonte no meio do mato. Papai e mamãe, e o Carlinho e a Ana Clara também, já estavam até levando garrafão para trazer a famosa água da fonte.

Sair todo mundo junto era uma coisa muito rara e era uma felicidade que não cabia dentro da gente. Sair com papai a gente já estava acostumado, perto do Natal, para procurar parasitas no calipeiro, para o presépio.

Sair todo mundo junto, até com a Vovó, só de vez em quando, para ir a Aparecida de trem. Aí a festa era maior.

Nesse dia de descobrir a fonte foi maravilhoso porque a gente ia indo mas ninguém sabia aonde a gente ia, nem o Papai, que era o nosso chefe. Ô festa! Só brincadeira!

Fomos acompanhando a linha do trem da fábrica até chegar na Vila Pajé, entramos pelo meio dela, fomos pela Vila Esperança até o final, às vezes parando em alguma casa e o meu pai perguntava onde que ficava a fonte. Ninguém sabia. - Nossa, Professor, nós não sabe.

Atravessamos o campinho da Vila Maria, fomos passando pelas casas e o Papai ia perguntando. Todo mundo conhecia o meu pai, por causa da igreja e por causa da escola. Mas ninguém conhecia a tal de fonte.

Aí entramos pelo calipeiro atrás da Vila Aimoré. Mandaram a gente perguntar na casa do Seu Juquinha, que ficava mais no meio do mato. Demorou mas a gente achou a casinha, tinha uma cabrita pastando e umas galinhas d’angola. Não vimos ninguém. Mamãe bateu palmas, nós também, era uma farra! Papai gritou: Ó de casa! Nós gostamos disso e também começamos a gritar: Ó de casa!

Nunca a gente tinha escutado ninguém gritar ó de casa.

Daí, lá do fundo do quintal veio vindo o Seu Juquinha, que quando viu a gente, tirou o chapeuzinho e falou assim: Louvado Seja Nosso Senhor Jesuis Cristo!

Pai, Mãe, Ana Clara, Carlinho responderam: Pra sempre seja louvado.

E aí o pai começou a conversar com o Seu Juquinha, explicando que a gente estava procurando a fonte que diziam que tinha ali por perto. Seu Juquinha parece que não entendeu direito. A mãe falou assim que diziam que a água era muito boa de beber.

Aí o Seu Juquinha fez uma cara bem contente e falou:

- Ah! É a mina! É a mina d’água! É aqui pertinho. Vamo lá que eu levo vocês na mina.

E o Seu Juquinha foi indo, conversando com Papai e nós todos fomos indo atrás, todo mundo contente. Anda que anda, saímos da sombra do calipeiro e entramos no capinzal, o capim gordura bem alto, mas tinha uma picadinha bem batida, a gente viu que bastante gente passava por ali todo dia.

Começamos a escutar o glu-glu-glu da água. De repente chegamos, um cano grosso jogava bastante água num cercadinho de tijolo. Em volta, era barro de terra preta. Todo mundo bebeu água direto da bica, depois Papai encheu os garrafões.

O Pedro falou: Nossa, gostosa a água da fonte, né Pai?

E o pai corrigiu: É água da mina, né Seu Juca?

Seu Juquinha deu risada: É professor, aqui todo mundo fala mina. Se falar fonte ninguém sabe que bicho que é!

Bom, os anos se passaram. Seu Juquinha nunca ficou sabendo, mas em casa, quando a gente ia falar dele, a gente só falava:

- O Seu Juquinha da Fonte.

E então algum de nós brincava:

- Ó de casa!

Anos mais tarde, voltamos a visitar o Seu Juquinha, mas então ele não morava mais no calipeiro atrás da Vila Aimoré. Tinha mudado para um lugar perto da Vila Figueira. Fomos lá para levar a cabrita para pegar cria com o bode dele. Para nós, aquele homem tão educado ficou sendo para sempre o Seu Juquinha da Fonte.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

O álbum de figurinhas da Leiteria

 

O Largo, com o Bar, a Leiteria, o Depósito do Clube e a Barbearia. 

Em cima, o Clube da Industrial.

*****


Suli, Deleu, Bellini e Riberto; Dias e Jurandir, Faustino, Pagão, Prado, Benê e Canhoteiro. O que era isto? 

Era a escalação do São Paulo Futebol Clube em 1963. Estou lembrando disto por causa do álbum de figurinhas que vendia na leiteria. Sim! A leiteria da Dona Alice e do Seu Emer Marangoni também era revistaria. Ali a gente comprava “O Pato Donald” toda terça e, uma vez por mês, o “Mickey”. De vez em quando, o irmão do Araújo comprava a “Epopeia” e, depois que lia, emprestava para nós. Não me esqueço da fabulosa “Historinhas Semanais”. Um encanto! “Historinhas Semanais” tinha uma porção de segredos. Janelinhas e portinhas que se abriam nas páginas, para você ver o que tinha lá dentro...

Dona Alice tinha uma palavra boa para cada um. Quando eu chegava no balcão para pegar o leite, ela sempre cumprimentava. Um dia ela me falou:

“Olha, esse litro seu está sujo por dentro. Aposto que você já tentou lavar e não conseguiu.”

Eu só falei:

“É!”, bem sem jeito.

Ela continuou:

“Essa sujeira dentro da garrafa é do leite mesmo, que a gordura dele gruda. Quando você for lavar a garrafa, põe um punhado de arroz cru junto com a água e um pedacinho de sabão. Você chacoalha bem, o arroz vai limpar tudo!”

Realmente, comecei a fazer isto e ficou uma beleza a garrafa. Ensinei para o pessoal de casa.

Mas, no meio das revistas, tinha uma coisa bem perigosa para fazer a gente gastar o dinheirinho da matinê. Eram os álbuns de figurinha.

A primeira metade do álbum só tinha times de futebol. Por isso que eu falei lá em cima os nomes dos jogadores do São Paulo. Mas tinha todos os times principais, de São Paulo e do Rio. Vou falar só os nomes dos goleiros: do Corinthians era o Cabeção; do Guarani era o Dimas; do Palmeiras era o Valdir; da Portuguesa era o Orlando; do Santos era o Gilmar etc.

Querem saber o time do Santos na época: Gilmar, Lima, Haroldo e Geraldino; Mengálvio, Zito e Calvet; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe.

Estou me distraindo na conversa. Estava contando para vocês sobre o álbum de figurinhas. Então, metade era com times de futebol. A outra metade, cada página era uma tentação: uma TV, uma geladeira, um liquidificador, uma batedeira de bolo, um rádio, uma vitrola, um jogo de copa, um fogão a gás, uma panela de pressão  um monte de coisa bonita. Se a gente preenchesse a página, ganhava o prêmio.

Dificílimo. Tinha que completar a página com todas as figurinhas, doze em cada folha. As páginas dos times também tinha que preencher para ganhar algum prêmio. Ganharia uma bola de capotão legítima, oficial, número cinco. Ou uma bicicleta. Meu Deus, aquilo era um sonho louco!

Vários prêmios já ficavam na leiteria, lá em cima das prateleiras. Tinha gente que, diziam, já tinha ganhado. Dum dia para o outro, sumia da leiteria uma bola, um dia sumiu um rádio, outro dia uma boneca. Aí diziam que foi um moleque lá da Vila Maria que ganhou. Outros falavam que foi alguém da Figueira, ninguém sabia muito certo.

Eu e o Bosco estávamos colecionando as figurinhas. Todo semana a gente comprava os envelopes com as figurinhas e o prazer era colar nas páginas. Depois, a gente trocava as repetidas com nossos colegas. E chegamos a um ponto em que todas as folhas estavam quase completas. Faltavam duas figurinhas em cada folha. Pessoas diziam que em cada região do estado havia figurinhas muito difíceis, mas que eram facinhas em outros lugares. Assim: diziam que lá em Ribeirão Preto essas que faltam são facinhas, facinhas.

E daí? O que que a gente ia fazer? Ia pegar o bonde do Seu Ciro Valentini para ir lá em Ribeirão Preto? Imagina só.

Daí, um dia, a mãe viu eu e o Bosco, os dois bem jururus. Ela perguntou o que era, nós mostramos o albinho. Faltando duas figurinhas em cada página.

A nossa mãe às vezes parece que tinha um sonho de felicidade, que tudo ia dar certo, sempre ia dar certo. Ela não se conformou com a nossa tristeza. Perguntou como é que fazia nesse caso, que já estava quase tudo cheio e a gente ainda não tinha ganhado nada. E não sei qual de nós dois que foi bocudo de colocar ideia na cabeça da mãe. A mãe estava parecendo uma criança grande, uma meninona capaz de acreditar em tudo.

Um de nós dois falou:

“Só se comprasse uma caixinha inteira.”

Mãe não deixou o assunto morrer. Já falou em cima:

 “Quanto que custa?”.

Fiquei até com medo desse pensamento, mas a mãe nos animou e falamos:

“Cinquenta cruzeiros a caixa de cinquenta envelopinho”.

Mãe ficou de pé e mandou:

“Pega o dinheiro, tá na terrina da cristaleira”.

“Mas mãe, é da conta do Armazém!”.

“Ora, vai valer muito mais se a gente ganhar um prêmio! Vão lá, traz uma caixa de figurinha!”

Fomos eu e meu irmão Bosquinho. Aconteceu tudo. Compramos uma caixa de figurinhas, cinquenta cruzeiros. Seu Emer fez uma brincadeira, disse que queria ver a gente de bicicleta nova. Saímos ligeiros da leiteria, não lembro do caminho de volta para casa, sei que sentamos no chão do quarto, a mãe na cama, vamos abrindo os pacotes, só figurinha repetida, só figurinha repetida, faltavam uns três pacotinhos, fomos abrindo já meio sem fala nós três, e acabou o último pacotinho, só figurinha repetida...

O que mamãe falou naquele dia, naquela hora? Acho que alguma coisa assim: Não faz mal... Deus ajuda... Não tem importância... Meus filhos...

Mas a cara dela ficou meio assustada, achei que estava meio branca. Deu dó, mas deu muito dó mesmo da nossa mãe.

Eu e o Bosco ficamos com uma espécie de vergonha. Mas ninguém criticou. Depois eu fui entendendo que aquele foi o grande lance da nossa mãe. Não deu certo, mas ela teve a coragem de arriscar. Foi mais corajosa do que eu e o Bosco.

E a conta do armazém da Cooperativa acabou sendo paga do mesmo jeito.


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Texto de Paulo Tarcizio da Silva Marcondes

Foto: Prof. João San Martin

domingo, 10 de setembro de 2023

A Vó de Pinda

 

Casa da Vó de Pinda, na Rua Gregório Costa. 
Do tempo antigo só sobrou essa casa na Gregório Costa. 
A entrada era pelo portãozinho no lado esquerdo.


Meu pai, o Professor Francisco, era filho de Francisco Carlos Marcondes e Maria Clara Fonseca Marcondes.

Infância de meu pai foi na Fazenda Itapecirica, em Taubaté. Adolescência dele foi estudando no Seminário Diocesano de Taubaté. Deu aulas, mais tarde, no colégio desse mesmo seminário.

Depois, quando já estava casado com minha mãe, ele trabalhou como operário na tecelagem da CTI, Companhia Taubaté Industrial, onde ainda existe aquele enorme relógio que dá para ver da Dutra.

Não conheci o meu avô paterno, Francisco Carlos Marcondes, o Nhonhô Marcondes. Era dono de um comércio em Taubaté, no Bairro de Itapecirica. Ele faleceu vários anos antes de eu nascer. Mas conheci a minha avó paterna, Maria Clara Fonseca Marcondes. Era a "Vó de Pinda", para diferenciar da nossa avó materna que morava conosco. A vó de Pinda tinha se mudado de Taubaté para Pinda.

Mudou-se para Pinda para acompanhar o seu filho caçula, o Jota Marcondes, menino ainda, que tinha vindo trabalhar na farmácia do Seu Arlindo Paim (onde hoje fica a Churrascaria Gramado, perto do Largo do Cruzeiro).

Além do meu pai, Professor Francisco, e do Jota Marcondes, a Vó de Pinda tinha também os seguintes filhos, todos nascidos e criados em Taubaté: Geraldo, Maria, Luís, Nazaré (Dala), e Aparecida.

Tio Geraldo morreu moço, de doença. Grande tristeza foi o meu Tio Luís, que morava em São Paulo e trabalhava na Light. Foi desligar uma chave de alta tensão, que ele não sabia que estava energizada. Foi jogado longe. Agonizou no hospital quase vinte dias.

Tia Maria foi casada com Seu Durvalino e era mãe de minhas primas Janda e Heleninha. Morou muitos anos numa casa em frente ao Rodrigo Romeiro.

Tia Cida foi morar em Coruputuba e, depois, na Vila São Benedito. Era casada com o Seu Sebastião Enfermeiro e era mãe do meu primo Valério.

A Vó de Pinda morava na Rua Gregório Costa (rua que começa no largo de São José e vai em direção à estão de trem). A casa onde ela morou ainda está em pé.

Eu tinha uns cinco ou seis anos quando fui com a mãe visitar a Vó de Pinda. O que ficou na minha lembrança foi a escuridão da casa. Não tinha tantas janelas como a nossa casa de Coruputuba, sempre arejada e clara.

Na cozinha, um fogão a lenha, com os tições crepitando. Com uma chaleira esquentando e, no canto, um bule bonito, meio velho, era um bule de esmalte verde com flores azuis. Nós falávamos na época: era um bule de ágata.

As paredes pretas de fuligem, o telhado enegricido de picumã, a iluminação natural entrava por uma telha de vidro lá em cima. A vó estava passando roupa com um ferro grandão e pesado. Ela puxou umas brasas do fogão, encheu o ferro e ficou balançando, para manter as brasas acesas.

A chaleira ferveu, ela passou café no coador de pano, tomei o café gúti-gúti, numa caneca de folha e depois me sentei na soleira da porta da cozinha, mastigando um pedaço de pão.

Alguém pode estranhar eu dizer que tomei café gúti-gúti. Isto quer dizer, beber de uma vez toda a caneca de café para só depois comer o pão. As crianças faziam assim. Só os adultos que ficavam dando uma dentada no pão e bicando gole de café.

Comi o pão e falei pra mãe: “Mãe, tô precisando”. A vó escutou e mandou eu ir na casinha, no fundo do quintal. Antigamente falavam assim: casinha, em vez de falar banheiro. Na "casinha", a privada era de buraco.

Fui lá fazer o que eu tinha que fazer. O quintal, saindo da porta da cozinha, ia baixando, todas as casas da rua eram mais altas do que os quintais. Vejam que a Rua Gregório Costa fica num tope de morro, os quintais vão descendo para o fundo do quarteirão.

O quintal tinha uma horta pequena, cercada de taquara por causa das galinhas. Uma ou outra bananeira e nas beiradas crescia capim e uns pés de mamona.

No fim do quintal, lá embaixo, uma cerca separava do bambuzal da beira do ribeirão. Hoje eu sei que o ribeirão que passava ali era o córrego do Tabaú. Bom, ainda passa, mas passa canalizado, debaixo da Alfredo Valentini e da Coronel José Francisco.

Papai não foi nessa visita que fizemos para a Vó de Pinda. Não dava para sair todo mundo de casa, e ele dava aula de tarde.

Talvez em 1960... não sei. A vó de Pinda mudou para Lorena, foi morar lá com a Tia Dala (Maria Nazaré), que trabalhava num hotel. Fui lá uma vez, com minha mãe (nosso pai já tinha falecido). Fomos na casa da vó, com um quintalzinho na frente da casa. Ela tinha uma galinha que obedecia tudo que ela mandava: Vem beber água!, vai ciscar no quintal!, vem pra dentro! A galinha dormia dentro de casa. Parecia um cachorrinho obediente, a vó ficava conversando com ela.

Depois fomos ver a Tia Dala no hotel. Uma escada alta, alta... degraus de madeira envernizada.

Quando a vó de Pinda - que já era Vó de Lorena - ficou doente, minha mãe foi passar algumas semanas com ela, para tomar conta, dar os remédios, conversar. A nossa avó paterna, Dona Maria Clara Fonseca Marcondes, morreu em 1963.

Minha mãe não foi ao enterro em Lorena, mas o Zaga foi. Ele já era mocinho, tinha dezoito anos, estava no Científico.

Depois ele me contou da casa, que eu já tinha conhecido antes dele. E me contou uma coisa que fiquei com dó. A galinha mansa não queria ir para o quintal, quis ficar no velório, ficava rodando pela sala, procurando...procurando... acho que querendo escutar aquela voz que ela tanto obedecia...